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     Date: 14 Aug 2003
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     EdiÚÇo especial da pÂgina www.paulocoelho.com.br , venda proibida








     ê  importante dizer  alguma coisa  sobre o  fato de O Alquimista ser um
livro simbÕlico, diferente de O  DiÂrio  de um Mago, que foi um  trabalho de
nÇo-ficÚÇo.
     Durante  onze anos de minha vida  estudei Alquimia.  A simples idÊia de
transformar metais em ouro,  ou de  descobrir o Elixir da Longa Vida, j era
fascinante demais para passar  despercebida  a qualquer  iniciante em Magia.
Confesso que  o Elixir da Longa Vida  me seduzia  mais: antes de  entender e
sentir  a  presenÚa  de  Deus,  a  idÊia de que  tudo ia acabar um  dia  era
desesperadora. De  maneira  que,  ao saber da  possibilidade de conseguir um
lÎquido  capaz  de  prolongar  por muitos  anos  minha  existËncia,  resolvi
dedicar- me de corpo e alma Á sua fabricaÚÇo.
     Era uma  Êpoca de  grandes  transformaÚÈes sociais - o comeÚo dos  anos
setenta -  e nÇo  havia ainda  publicaÚÈes  sÊrias  a  respeito de Alquimia.
Comecei,  como um dos personagens do livro, a gastar  o  pouco dinheiro  que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do  meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trËs pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente  Á Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tambÊm  muitas outras pessoas  que  se diziam  alquimistas,
possuÎam  seus laboratÕrios,  e prometiam  me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
     Mesmo  com  toda a  minha  dedicaÚÇo, os  resultados eram absolutamente
nulos. NÇo acontecia  nada do que os manuais de  Alquimia  afirmavam  em sua
complicada linguagem. Era  um sem-fim de  sÎmbolos, de dragÈes, leÈes, sÕis,
luas e mercßrios, e eu sempre tinha a impressÇo de estar no caminho  errado,
porque a linguagem simbÕlica permite uma gigantesca  margem de equÎvocos. Em
1973,  j  desesperado com  a  ausËncia  de progresso,  cometi  uma  suprema
irresponsabilidade.  Nesta  Êpoca  eu  era  contratado  pela  Secretaria  de
EducaÚÇo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele  estado, e  resolvi
utilizar meus alunos em laboratÕrios teatrais que  tinham como tema  a TÂboa
da Esmeralda.  Esta  atitude, aliada  a algumas  incursÈes  minhas nas Âreas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prÕpria carne a verdade do provÊrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
     Passei os prÕximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cÊtica
com  relaÚÇo a  tudo que dissesse  respeito Á  Ârea  mÎstica.  Neste  exÎlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que  sÕ aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da  alma, que nÇo  devemos fugir de nosso
prÕprio destino, e que a mÇo de Deus Ê infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
     Em 1981, conheci  RAM e o meu  Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho  que est traÚado  para mim.  E  enquanto ele  me  treinava em  seus
ensinamentos,  voltei  a  estudar  Alquimia por  minha prÕpria conta.  Certa
noite, enquanto  conversÂvamos depois de uma  exaustiva sessÇo de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tÇo vaga e tÇo complicada.
     - Existem trËs tipos  de alquimistas - disse meu Mestre. -  Aqueles que
sÇo vagos porque nÇo sabem o que estÇo falando; aqueles que sÇo vagos porque
sabem  o que estÇo  falando, mas sabem tambÊm  que a linguagem da Alquimia Ê
uma linguagem dirigida ao coraÚÇo, e nÇo Á razÇo.


     - E qual o terceiro tipo? - perguntei.
     -  Aqueles  que jamais ouviram  falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atravÊs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
     E com isto, meu  Mestre - que pertencia  ao segundo tipo - resolveu  me
dar aulas  de  Alquimia. Descobri que a  linguagem simbÕlica, que  tanto  me
irritava  e  me desnorteava,  era a ßnica maneira  de  se  atingir a Alma do
Mundo,  ou o  que  Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a  Lenda
Pessoal, e  os  Sinais de  Deus, verdades que meu raciocÎnio intelectual  se
recusava a aceitar  por causa  de  sua simplicidade. Descobri que atingir  a
Grande  Obra nÇo Ê tarefa de poucos, mas de todos os seres  humanos  sobre a
face da Terra. ê claro que  nem sempre a  Grande Obra vem sob a  forma de um
ovo e de um  frasco com lÎquido, mas todos nÕs podemos - sem qualquer sombra
de dßvida - mergulhar na Alma do Mundo.
     Por isso, "O Alquimista" Ê tambÊm  um  texto  simbÕlico. No decorrer de
suas pÂginas, alÊm de  transmitir tudo  o  que aprendi a  respeito,  procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway,  Blake, Borges (que tambÊm utilizou  a histÕria persa  para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.

     Para  completar este  extenso  prefÂcio,  e  ilustrar  o que meu Mestre
queria  dizer com o terceiro tipo de  alquimistas, vale  a pena recordar uma
histÕria que ele mesmo me contou no seu laboratÕrio.
     Nossa Senhora, com  o Menino Jesus  em seus braÚos,  resolveu  descer Á
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres  fizeram uma grande
fila, e  cada um  chegava diante  da  Virgem  para prestar sua homenagem. Um
declamou belos  poemas,  outro  mostrou suas  iluminuras  para a  BÎblia, um
terceiro  disse  o  nome de todos os  santos. E assim por diante, monge apÕs
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
     No ßltimo lugar  da  fila,  havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sÂbios textos da Êpoca. Seus pais eram  pessoas
simples, que trabalhavam num velho  circo das  redondezas, e  tudo  que  lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
     Quando  chegou  sua   vez,  os  outros   padres  quiseram  encerrar  as
homenagens, porque  o antigo malabarista nÇo  tinha  nada de importante para
dizer, e podia  desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no  fundo  do
seu coraÚÇo, tambÊm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
     Envergonhado,  sentindo o olhar reprovador  de seus  irmÇos,  ele tirou
algumas  laranjas   do  bolso  e  comeÚou  a  jogÂ-las  para  cima,  fazendo
malabarismos, que era a ßnica coisa que sabia fazer.
     Foi sÕ neste instante que  o Menino Jesus  sorriu,  e comeÚou  a  bater
palmas no colo de Nossa  Senhora.  E foi  para ele que  a Virgem estendeu os
braÚos, deixando que segurasse um pouco o menino.












     Para J.
     Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.







     Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
     chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
     Tinha ela uma irmÇ, chamada Maria, que sentou-se aos pÊs do Senhor, e
     ficou ouvindo seus ensinamentos.
     Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviÚos.
     EntÇo aproximou-se  de Jesus e disse: - Senhor! NÇo te importas  de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
     irmÇ que venha ajudar-me!
     Respondeu-lhe o Senhor:
     - Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
     "Maria,  entretanto,  escolheu  a  melhor  parte, e  esta nÇo lhe  serÂ
tirada."








     O Alquimista  pegou  um livro  que alguÊm na  caravana havia trazido. O
volume  estava  sem capa, mas  conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas pÂginas, encontrou uma histÕria sobre Narciso.
     O Alquimista conhecia  a  lenda de  Narciso, um belo rapaz que todos os
dias  ia  contemplar  sua prÕpria beleza  num lago. Era tÇo fascinado por si
mesmo  que certo  dia  caiu dentro do  lago e morreu  afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
     Mas nÇo era assim que Oscar Wilde acabava a histÕria.
     Ele dizia  que quando  Narciso morreu,  vieram as OrÊiades  - deusas do
bosque  - e viram o lago transformado, de um lago de  Âgua doce, num c×ntaro
de lÂgrimas salgadas.
     - Por que vocË chora? - perguntaram as OrÊiades.
     - Choro por Narciso - disse o lago
     - Ah, nÇo nos espanta que vocË chore por Narciso - continuaram  elas. -
Afinal  de contas,  apesar de  todas  nÕs sempre  corrermos atrÂs dele  pelo
bosque, vocË era o ßnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
     - Mas Narciso era belo? - perguntou o lago.
     - Quem mais do que vocË poderia  saber disso? - responderam, surpresas,
as OrÊiades.
     - Afinal  de contas, era em suas margens que ele se debruÚava todos  os
dias.
     O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
     -  Eu choro  por Narciso,  mas jamais  havia percebido  que Narciso era
belo.
     "Choro  por  Narciso porque,  todas  as vezes que ele  se deitava sobre
minhas margens eu podia ver,  no  fundo dos seus olhos, minha prÕpria beleza
refletida".

     "Que bela histÕria", disse o Alquimista.





     O rapaz chamava-se Santiago. Estava comeÚando a escurecer quando chegou
com  seu  rebanho  diante  de  uma  velha igreja abandonada.  O  teto  tinha
despencado  h muito tempo, e um enorme sicÆmoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
     Resolveu  passar a noite ali.  Fez  com que todas as ovelhas  entrassem
pela porta em ruÎnas, e entÇo colocou  algumas tÂbuas de modo  que  elas nÇo
pudessem fugir  durante a noite. NÇo haviam lobos naquela regiÇo,  mas certa
vez  um  animal havia escapado durante  a noite, e  ele gastara  todo o  dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
     Forrou o chÇo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro.  Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comeÚar  a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortÂveis durante a noite.
     Ainda  estava  escuro  quando acordou. Olhou para  cima,  e viu que  as
estrelas brilhavam atravÊs do teto semidestruÎdo.
     "Queria  dormir  um pouco mais",  pensou ele. Tivera  o mesmo sonho  da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
     Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comeÚou a
acordar as ovelhas  que ainda dormiam. Ele havia  reparado  que,  assim  que
acordava, a maior parte dos  animais  tambÊm comeÚava  a despertar. Como  se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida  Á vida daquelas  ovelhas
que h  dois anos percorriam com ele a terra, em  busca  de Âgua e alimento.
"Elas j se acostumaram  tanto  a mim que  conhecem meus horÂrios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que  podia ser  tambÊm o contrÂrio:
ele que havia se acostumado ao horÂrio das ovelhas.
     Haviam  certas  ovelhas,  porÊm,  que  demoravam  um  pouco  mais  para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada  qual pelo
seu nome. Sempre  acreditara  que as ovelhas  eram capazes de entender o que
ele  falava. Por isso  costumava Ás vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidÇo e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as ßltimas novidades  que  via nas cidades por onde
costumava passar.
     Nos ßltimos  dois dias, porÊm, seu assunto  tinha  sido praticamente um
sÕ: a  menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a  quatro  dias. Tinha estado apenas uma vez lÂ,  no  ano  anterior. O
comerciante era dono  de uma loja  de  tecidos, e  gostava sempre de ver  as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificaÚÈes. Um  certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou l suas ovelhas.






     "Preciso vender alguma lÇ", disse para o comerciante.
     A loja do  homem estava  cheia,  e o  comerciante  pediu  que  o pastor
esperasse  atÊ o entardecer.  Ele sentou-se na  calÚada da  loja e tirou  um
livro do alforje.
     -  NÇo sabia que os  pastores sÇo capazes de ler livros - disse uma voz
feminina ao seu lado.


     Era  uma moÚa  tÎpica da regiÇo de Andaluzia, com  seus cabelos  negros
escorridos, e os olhos  que  lembravam  vagamente os  antigos conquistadores
mouros.
     - ê porque as ovelhas ensinam mais  que os  livros - respondeu o rapaz.
Ficaram  conversando  por  mais de  duas horas.  Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era  igual ao outro. O
pastor contou dos  campos de Andaluzia, das  ßltimas novidades  que  viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por nÇo precisar conversar sempre com
as ovelhas.
     - Como aprendeu a ler? - perguntou a moÚa a certa altura.
     - Como todas as outras pessoas - respondeu o rapaz. - Na escola.
     - E, se sabe ler, entÇo por que Ê apenas um pastor?
     O rapaz  deu uma desculpa  qualquer para nÇo responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a moÚa  jamais entenderia. Continuou  a contar suas
histÕrias  de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se  de
espanto  e surpresa.  á medida  que o tempo foi passando, o rapaz  comeÚou a
desejar que aquele dia nÇo acabasse nunca, que o pai da moÚa ficasse ocupado
por muito  tempo e o mandasse  esperar por trËs dias.  Percebeu  que  estava
sentindo uma coisa  que nunca havia sentido antes:  vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
     Mas  o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois,  pagou-lhe o que era  devido, e  pediu  que voltasse no ano
seguinte.





     Agora  faltavam apenas  quatro dias para chegar de novo Á mesma aldeia.
Estava excitado  e  ao mesmo  tempo  inseguro: talvez a  menina  j  tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lÇ.
     - NÇo tem import×ncia - disse o rapaz para as suas ovelhas. - Eu tambÊm
conheÚo outras meninas em outras cidades.
     Mas no fundo do seu coraÚÇo,  ele  sabia  que tinha import×ncia.  E que
tanto os pastores,  como  os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia alguÊm capaz de fazer com  que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.






     O dia comeÚou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direÚÇo
ao sol. "Elas  nunca  precisam tomar uma decisÇo",  pensou ele. "Talvez  por
isso fiquem  sempre  juntos  de mim". A  ßnica  necessidade  que as  ovelhas
sentiam era de Âgua e de alimento. Enquanto o  rapaz conhecesse  os melhores
pastos  em Andaluzia,  elas seriam  sempre  suas  amigas. Mesmo que  os dias
fossem  todos iguais, com longas horas se  arrastando entre  o  nascer  e  o
pÆr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sÕ livro  em suas  curtas
vidas, e  nÇo conhecessem a lÎngua  dos homens que contavam as novidades nas
aldeias.  Elas  estavam contentes  com Âgua  e alimento, e isto  bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lÇ, sua companhia, e - de vez em quando -
sua carne.
     "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
sÕ iam  perceber  depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram  de confiar nos seus
prÕprios instintos. SÕ porque as conduzo ao alimento e Á comida".
     O rapaz comeÚou a estranhar seus prÕprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicÆmoro crescendo dentro, fosse  mal-assombrada. Tinha feito com
que  sonhasse um  mesmo  sonho pela  segunda  vez, e  estava  lhe  dando uma
sensaÚÇo de raiva contra suas companheiras, sempre tÇo fiÊis. Bebeu um pouco
de vinho que  havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou  contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tÇo forte que nÇo ia poder
     conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
verÇo. O calor durava atÊ  a noite, e  durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando  o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do  peso,
sempre lembrava que por causa dele nÇo havia sentido frio de manhÇ.
     "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
entÇo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
     O  casaco  tinha  um motivo,  e  o  rapaz  tambÊm.  Em dois anos  pelas
planÎcies de Andaluzia ele j sabia  de  cor todas as  cidades  da regiÇo, e
esta  era a  grande razÇo de sua vida;  viajar. Estava  planejando  explicar
desta vez Á menina porque um  simples  pastor  sabe ler: havia estado atÊ os
dezesseis anos  num seminÂrio.  Seus  pais queriam  que  ele fosse  padre, e
motivo de orgulho para  uma simples famÎlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e Âgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e  teologia.
Mas  desde  crianÚa  sonhava  em conhecer o  mundo,  e isto era  muito  mais
importante do que conhecer Deus ou os  pecados  dos homens.  Certa tarde, ao
visitar a famÎlia, havia tomado coragem  e dito para seu  pai que nÇo queria
ser padre. Queria viajar.




     - Homens de todo o  mundo j passaram por esta aldeia, filho - disse  o
pai. - VËm em busca de  coisas novas, mas continuam as  mesmas pessoas.  VÇo
atÊ  o morro conhecer o castelo e  acham  que  o passado  era  melhor que  o
presente.  TËm cabelos louros ou pele escura, mas sÇo iguais  aos  homens de
nossa aldeia.
     - Mas nÇo conheÚo  os castelos das terras de onde eles vËm - retrucou o
rapaz.
     - Estes  homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui - continuou o pai.
     - Quero conhecer as mulheres e as  terras de onde eles vieram - disse o
rapaz. - Porque eles nunca ficam por aqui.
     - Os homens  trazem a bolsa cheia de dinheiro  - disse mais  uma  vez o
pai. - Entre nÕs, sÕ os pastores viajam.
     - EntÇo serei pastor.
     O pai nÇo disse mais nada.  No dia seguinte deu-lhe uma bolsa  com trËs
antigas moedas de ouro espanholas.
     - Achei certo  dia no campo.  Iam ser da Igreja, como  seu dote. Compre
seu rebanho  e  corra  o  mundo  atÊ  aprender que  nosso  castelo Ê o  mais
importante, e nossas mulheres sÇo as mais belas.
     E o abenÚoou. Nos olhos do pai ele  leu  tambÊm  a vontade de  correr o
mundo. Uma vontade  que  ainda vivia, apesar das dezenas de  anos que ele  a
tentou sepultar com Âgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.






     O horizonte  se  tingiu  de vermelho, e depois  apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da  conversa com  o pai e sentiu-se  alegre;  tinha j  conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual Áquela  que o  esperava
em  dois dias). Tinha um  casaco, um livro  que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, Ê que todo dia  realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia  vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando  cansasse  do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
     "NÇo sei  como buscam Deus no seminÂrio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que  possÎvel, buscava  um  caminho diferente para andar.
Nunca  havia estado  naquela igreja antes, apesar de  haver  passado  tantas
vezes por ali. O mundo  era grande e inesgotÂvel, e se  ele deixasse que  as
ovelhas o  guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema Ê que elas nÇo se dÇo conta  de que estÇo fazendo
caminhos novos cada dia. NÇo percebem que os pastos mudaram, que as estaÚÈes
sÇo diferentes - porque estÇo apenas ocupadas com Âgua e comida."
     "Talvez seja assim com todos nÕs" - pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
nÇo  penso em outras  mulheres desde que conheci a  filha  do  comerciante".
Olhou  o cÊu,  e pelos seus cÂlculos estaria antes do almoÚo em  Tarifa.  LÂ
poderia trocar  seu  livro por  um  volume mais grosso, encher a  garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto  para  encontrar a
menina, e nÇo  queria pensar  na possibilidade de  outro pastor ter  chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mÇo.
     "ê  justamente  a possibilidade de realizar um  sonho que torna a  vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cÊu e apressava o passo.
Tinha  acabado  de  se  lembrar  que  em  Tarifa  morava  uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.




     A  velha conduziu o rapaz atÊ um quarto no  fundo da casa,  separado da
sala  por uma cortina feita  de tiras de plÂstico colorido. LÂ  dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus, e duas cadeiras.
     A velha  sentou-se  e pediu  que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mÇos do rapaz e rezou baixo.
     Parecia uma reza cigana. O  rapaz  j  havia encontrado muitos  ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto nÇo cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que  a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambÊm
que eles tinham pacto com demÆnios, e que raptavam crianÚas para servirem de
escravas em seus  misteriosos  acampamentos.  Quando  era  pequeno,  o rapaz
sempre tinha morrido  de medo  de ser raptado  pelos ciganos,  e  este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mÇos.
     "Mas  existe  a  imagem  do  Sagrado  CoraÚÇo  de Jesus",  pensou  ele,
procurando ficar mais calmo. NÇo queria que sua mÇo comeÚasse  a tremer  e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silËncio.
     - Que interessante - disse a velha, sem tirar os olhos da mÇo do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
     O rapaz estava ficando nervoso. Suas mÇos comeÚaram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mÇos rapidamente.
     - NÇo vim aqui para ler as mÇos - disse, j arrependido de  ter entrado
naquela casa. Pensou por  um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora  sem saber  de  nada. Estava  dando  import×ncia demais  a  um  sonho
repetido.
     -  VocË veio saber de  sonhos - respondeu a velha. - E os sonhos  sÇo a
linguagem  de  Deus.  Quando  ele  fala  a  linguagem  do  mundo,  eu  posso
interpretar.  Mas  se  ele  falar a linguagem  de  sua alma,  sÕ  vocË  pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
     Mais  um  truque, pensou  o rapaz. Entretanto,  resolveu  arriscar.  Um
pastor  corre  sempre o risco dos  lobos  ou  da seca,  e  isto Ê que faz  a
profissÇo de pastor mais excitante.
     - Tive  o mesmo sonho  duas vezes seguidas - disse. - Sonhei que estava
num  pasto  com  minhas  ovelhas  quando aparecia uma crianÚa, e comeÚava  a
brincar  com os animais. NÇo gosto que mexam  nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crianÚas sempre conseguem mexer com os animais
sem que  eles se assustem. NÇo  sei porquË. NÇo sei como os  animais sabem a
idade dos seres humanos.
     - Volte  para  seu sonho  - disse  a velha. - Tenho uma panela no fogo.
AlÊm disso vocË tem pouco dinheiro e nÇo pode tomar todo o meu tempo.
     - A crianÚa  continuava a  brincar com  as ovelhas  por  algum tempo  -
continuou o rapaz, um  pouco  constrangido. -  E de repente, me pegava pelas
mÇos e me levava atÊ as Pir×mides do Egito.
     O  rapaz  esperou um  pouco  para ver se  a velha sabia o  que eram  as
Pir×mides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
     - EntÇo, nas Pir×mides do  Egito, - ele falou as trËs ßltimas  palavras
lentamente,  para que a velha pudesse entender bem - a crianÚa me dizia: "se
vocË vier atÊ aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.


     A velha continuou em silËncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mÇos do rapaz e estudÂ-las atentamente.
     - NÇo vou lhe cobrar nada agora - disse a velha. Mas quero um dÊcimo do
tesouro, se vocË encontrÂ-lo.
     O rapaz riu. De felicidade. EntÇo iria economizar o pouco  dinheiro que
tinha, por causa de  um sonho que  falava  em  tesouros escondidos! A  velha
devia ser mesmo uma cigana - os ciganos sÇo burros.
     - EntÇo interprete o sonho - pediu o rapaz.
     - Antes jure. Jure que vocË vai me dar a dÊcima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
     O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus.
     - ê um sonho da Linguagem do Mundo - disse ela. -  Posso interpretÂ-lo,
e Ê uma interpretaÚÇo muito difÎcil. Por isso acho que mereÚo minha parte no
seu achado.
     "E a interpretaÚÇo  Ê esta:  vocË deve ir  atÊ as Pir×mides  do  Egito.
Nunca  ouvi falar  delas, mas se  foi uma crianÚa  que lhe mostrou, Ê porque
existem. L vocË encontrar um tesouro que lhe far rico".
     O  rapaz ficou surpreso, e depois irritado. NÇo precisava ter procurado
a velha para isto.
     Finalmente lembrou-se de que nÇo estava pagando nada.
     - Para isto eu nÇo precisava perder meu tempo - disse.
     - Por isso lhe falei que seu sonho era difÎcil. As coisas  simples  sÇo
as mais extraordinÂrias, e sÕ os sÂbios conseguem vË-las. JÂ que nÇo sou uma
sÂbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mÇos.
     - E como eu vou chegar atÊ o Egito?
     -  Eu  sÕ interpreto sonhos. NÇo  sei transformÂ-los em  realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dÇo.
     - E se eu nÇo chegar atÊ o Egito?
     - Eu fico sem pagamento. NÇo ser a primeira vez.
     E a velha nÇo disse mais nada. Pediu para que o rapaz saÎsse,  pois  jÂ
tinha perdido muito tempo com ele.




     O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais  acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha vÂrias providËncias a tomar: foi ao armazÊm arranjar
alguma comida,  trocou  seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se  num
banco da praÚa para saborear  o  vinho novo que  havia comprado. Era um  dia
quente,  e  o vinho, por um destes mistÊrios insondÂveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada  da cidade, no estÂbulo de
um novo amigo  seu. Conhecia muita  gente por aquelas  bandas -  e  por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba  fazendo amigos novos, e nÇo precisa
ficar com eles dia apÕs dia. Quando a gente vË  sempre as mesmas pessoas - e
isto acontecia no seminÂrio - terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de  nossas  vidas. E como  elas fazem parte de  nossas  vidas,  passam
tambÊm a querer modificar nossas vidas. Se a gente nÇo for como elas esperam
ficar,  chateadas. Porque todas as pessoas tem a noÚÇo exata de como devemos
viver nossa vida.
     E  nunca  tËm noÚÇo de como devem viver  as suas prÕprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que nÇo sabia transformÂ-los em realidade.
     Resolveu  esperar  o  sol descer  um pouco,  antes  de seguir com  suas
ovelhas em  direÚÇo ao campo. Daqui a trËs  dias  iria estar com a filha  do
comerciante.
     ComeÚou a  ler o livro que tinha conseguido com o padre de  Tarifa. Era
um  livro grosso,  que falava de um  enterro  logo na primeira  pÂgina. AlÊm
disso, o nome dos personagens eram complicadÎssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um  personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores nÇo tivessem que ficar decorando nomes.
     Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, - e era boa, porque
falava  de um  enterro na neve,  o que lhe transmitia  uma sensaÚÇo de  frio
debaixo daquele imenso sol -  um velho sentou-se  ao seu  lado e  comeÚou  a
puxar conversa.
     -  O  que eles estÇo  fazendo? - perguntou  o velho, apontando  para as
pessoas da praÚa.
     - Trabalhando - respondeu o  rapaz, secamente, e  voltou a  fingir  que
estava concentrado  na leitura.  Na verdade, estava  pensando em tosquiar as
ovelhas na frente  da filha do  comerciante, para ela  atestar como  ele era
capaz de fazer coisas interessantes. JÂ havia imaginado esta cena uma porÚÇo
de vezes;  em todas elas, a menina ficava deslumbrada  quando ele comeÚava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trÂs para frente. TambÊm
tentava  se lembrar  de  algumas  boas  histÕrias para contar a ela enquanto
tosquiava  as ovelhas.  A  maior parte ele  tinha lido nos  livros, mas iria
contar  como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenÚa,
porque nÇo sabia ler livros.
     O  velho, entretanto,  insistiu. Falou que estava cansado, com sede,  e
pediu um gole  de vinho  ao rapaz. O  rapaz ofereceu sua  garrafa;  talvez o
velho ficasse quieto.
     Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz  estava  lendo.  Ele pensou em ser rude e mudar de banco,  mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. EntÇo estendeu o livro para
o  velho, por duas razÈes: a primeira Ê que nÇo sabia pronunciar o tÎtulo. E
a segunda era que, se o velho nÇo soubesse ler, ia ele mesmo  mudar de banco
para nÇo sentir-se humilhado.
     - Humm... - disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. - ê um livro importante, mas Ê muito chato.
     O rapaz ficou surpreso.  O velho  tambÊm lia, e j lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.


     - ê um livro que fala  o que quase todos os livros falam -  continuou o
velho. - Da incapacidade que as pessoas tËm de escolher seu prÕprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.


     - Qual Ê a maior mentira do mundo? - indagou surpreso o rapaz.
     -  ê  esta: em  determinado  momento de  nossa  existËncia,  perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta Ê a
maior mentira do mundo.
     - Comigo nÇo aconteceu isto -  disse o rapaz. -  Queriam  que  eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
     - Assim Ê melhor - disse o velho. - Porque vocË gosta de viajar.
     "Ele adivinhou  meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava  o livro grosso, sem a  menor intenÚÇo de devolvË-lo. O rapaz notou
que ele  vestia  uma roupa estranha; parecia um Ârabe,  o  que nÇo  era raro
naquela regiÇo. A âfrica ficava a apenas algumas  horas da Tarifa; e  era sÕ
cruzar  o pequeno  estreito  num  barco.  Muitas vezes  apareciam  Ârabes na
cidade, fazendo compras e rezando oraÚÈes estranhas vÂrias vezes por dia.
     - De onde Ê o senhor? - perguntou.
     - De muitas partes.
     - NinguÊm pode ser de muitas partes - o rapaz falou. - Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um ßnico lugar, de uma  cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
     - EntÇo podemos dizer que eu nasci em SalÊm.
     -  O rapaz nÇo sabia onde era  SalÊm,  mas nÇo quis  perguntar para nÇo
sentir-  se humilhado  com  a  prÕpria  ignor×ncia. Ficou  mais  algum tempo
olhando a praÚa. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
     - Como est SalÊm? - perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
     - Como sempre esteve.
     Ainda nÇo era uma pista. Mas sabia  que SalÊm nÇo  estava em Andaluzia.
SenÇo, ele j a teria conhecido.
     - E o que vocË faz em SalÊm? - insistiu.
     - O que faÚo  em SalÊm? -  o  velho pela  primeira vez  deu uma gostosa
gargalhada. - Ora, eu sou o Rei de SalÊm!
     As  pessoas dizem  coisas muito estranhas, pensou o  rapaz. ás vezes  Ê
melhor estar com as ovelhas, que  sÇo caladas, e apenas  procuram alimento e
Âgua. Ou Ê melhor estar com os livros, que contam  estÕrias incrÎveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala  com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
     - Meu nome Ê Melquisedec - disse o velho. - Quantas ovelhas vocË tem?
     -  O  suficiente  - respondeu  o rapaz. O velho  estava querendo  saber
demais sobre sua vida.
     - EntÇo estamos diante de um problema. NÇo posso ajudÂ-lo enquanto vocË
achar que tem ovelhas suficientes.
     O  rapaz  se irritou. NÇo estava pedindo  ajuda. O  velho Ê  que  tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
     -  Me devolva o  livro - disse. - Tenho que  ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.


     -  Me dË um  dÊcimo de suas ovelhas - disse o velho. -  E eu lhe ensino
como chegar atÊ o tesouro escondido.

     O rapaz  tornou entÇo a lembrar-se do  sonho, e  de  repente tudo ficou
claro.  A velha  nÇo tinha  cobrado  nada, mas  o velho - que era talvez seu
marido  -  ia  conseguir arrancar  muito  mais  dinheiro  em  troca  de  uma
informaÚÇo que nÇo existia. O velho devia ser cigano tambÊm.
     Antes que o  rapaz dissesse  qualquer coisa, porÊm, o velho abaixou-se,
pegou um  graveto, e  comeÚou a escrever na areia  da praÚa. Quando  ele  se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase  cegou o rapaz.  Mas num movimento  rÂpido demais para  alguÊm de  sua
idade, tornou a cobrir o  brilho com o  manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
     Na areia da  praÚa  principal da  pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mÇe.
     Leu  a histÕria  de  sua  vida  atÊ aquele  momento, as brincadeiras de
inf×ncia, as noites frias do seminÂrio. Leu o nome da filha  do comerciante,
que nÇo sabia. Leu coisas que jamais contara para alguÊm, como o dia  em que
roubou a  arma do  seu pai para  matar veados, ou sua primeira  e  solitÂria
experiËncia sexual.





     "Sou o Rei de SalÊm", dissera o velho.
     -  Por  que  um  rei conversa  com  um  pastor? -  perguntou  o  rapaz,
envergonhado e admiradÎssimo.
     - Existem  vÂrias razÈes. Mas vamos dizer que  a mais importante  Ê que
vocË tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
     O rapaz nÇo sabia o que era Lenda Pessoal.
     -  ê aquilo  que vocË sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comeÚo
da juventude, sabem qual Ê sua Lenda Pessoal.
     "Nesta altura da  vida,  tudo  Ê claro, tudo Ê possÎvel, e elas nÇo tËm
medo de sonhar  e desejar tudo aquilo que  gostariam de ver  fazer  em  suas
vidas.  Entretanto,  Á medida  em  que o  tempo vai passando, uma misteriosa
forÚa comeÚa a tentar provar que Ê impossÎvel realizar a Lenda Pessoal.
     O que o velho estava dizendo nÇo fazia muito sentido para o  rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "forÚas misteriosas"; a filha  do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
     - SÇo  as  forÚas que  parecem ruins, mas na  verdade estÇo ensinando a
vocË como  realizar  sua Lenda Pessoal. EstÇo preparando seu espÎrito  e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocË  quem for
ou o que  faÚa, quando quer com vontade alguma  coisa, Ê  porque este desejo
nasceu na alma do Universo. ê sua missÇo na Terra.
     - Mesmo que  seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
     - Ou  buscar um tesouro. A Alma  do Mundo Ê alimentada pela  felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, cißme. Cumprir sua Lenda  Pessoal
Ê a ßnica obrigaÚÇo dos homens. Tudo Ê uma coisa sÕ.
     "E quando vocË  quer alguma coisa, todo  o Universo  conspira  para que
vocË realize seu desejo".

     Durante algum tempo ficaram em silËncio, olhando a praÚa  e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
     - Por que vocË cuida de ovelhas?
     - Porque gosto de viajar.
     Ele apontou um pipoqueiro, com  sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da praÚa.
     - Aquele  pipoqueiro tambÊm  sempre desejou viajar, quando crianÚa. Mas
preferiu  comprar uma  carrocinha de pipoca,  juntar dinheiro durante  anos.
Quando estiver velho, vai  passar um  mËs na âfrica.  Jamais  entendeu que a
gente sempre tem condiÚÈes para fazer o que sonha.
     - Devia ter escolhido ser um pastor - pensou em voz alta o rapaz.
     - Ele  pensou  nisto - disse  o velho. - Mas  os  pipoqueiros sÇo  mais
importantes  que  os  pastores.  Os  pipoqueiros tËm uma casa,  enquanto  os
pastores dormem  ao  relento.  As  pessoas  preferem  casar  suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
     O  rapaz  sentiu  uma  pontada  no   coraÚÇo,  pensando   na  filha  do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.


     -  Enfim, o que as  pessoas  pensam sobre pipoqueiros e sobre  pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
     O  velho folheou  o  livro,  e distraiu-se lendo  uma pÂgina.  O  rapaz
esperou  um  pouco,  e o interrompeu  da  mesma  maneira  como  ele  o havia
interrompido.
     - Por que vocË fala estas coisas comigo?
     - Porque vocË tenta viver sua Lenda Pessoal. E est a ponto de desistir
dela.
     - E vocË aparece sempre nestas horas?
     - Nem  sempre  desta forma,  mas jamais deixei  de  aparecer.  ás vezes
apareÚo sob a  forma de uma boa  saÎda,  uma boa  idÊia. Outras  vezes,  num
momento crucial, faÚo as coisas ficarem mais fÂceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas nÇo nota isto.
     O velho contou que na semana passada ele tinha  sido forÚado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir  em  busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou  num  rio,  e
tinha  quebrado  999.999  pedras em  busca  de uma esmeralda.  Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e sÕ faltava uma pedra  - apenas UMA PEDRA  -
para ele  descobrir sua esmeralda. Como ele tinha  sido  um homem  que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o  velho resolveu interferir.  Transformou-se
numa  pedra  que  rolou  sobre o pÊ do  garimpeiro.  Este,  com  a  raiva  e
frustraÚÇo  dos  cinco anos perdidos, atirou  a pedra longe. Mas  atirou com
tanta forÚa que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
     - As pessoas aprendem muito cedo sua razÇo de viver - disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. -  Talvez seja por isso  que elas desistem tÇo
cedo tambÊm. Mas assim Ê o mundo.
     EntÇo  o rapaz se lembrou que a conversa  havia comeÚado com o  tesouro
escondido.
     -  Os  tesouros  sÇo  levantados da  terra pela  torrente  de  Âgua,  e
enterrados  por estas mesmas  enchentes - disse  o  velho. - Se  vocË quiser
saber sobre seu tesouro, ter que me ceder um dÊcimo de suas ovelhas.
     - E nÇo serve um dÊcimo do tesouro?
     O velho ficou decepcionado.
     -  Se vocË sair prometendo  o que ainda nÇo tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
     O rapaz entÇo contou que tinha prometido um dÊcimo Á cigana.
     - Os  ciganos sÇo espertos - suspirou o velho. - De qualquer maneira  Ê
bom vocË aprender que tudo na vida tem um preÚo. ê isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
     O velho devolveu o livro ao rapaz.
     - AmanhÇ, nesta mesma  hora, vocË me traz um dÊcimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
     E sumiu numa das esquinas da praÚa.


     O rapaz tentou  ler o  livro,  mas  nÇo  conseguiu concentrar-se  mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atÊ o
pipoqueiro, comprou  um saco  de pipocas, enquanto  pensava se devia  ou nÇo
contar a ele o que o velho dissera. "ás vezes Ê melhor deixar as coisas como
estÇo", pensou  o  rapaz, e ficou  quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trËs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.


     Ele podia  evitar este sofrimento  ao  pipoqueiro.  ComeÚou a andar sem
rumo pela cidade, e  foi atÊ o porto. Havia um pequeno prÊdio,  e no  prÊdio
havia uma janelinha onde  as pessoas compravam passagens. O Egito  estava na
âfrica.
     - Quer alguma coisa? - perguntou o sujeito no guichË.
     - Talvez amanhÇ -  disse o rapaz se afastando. Se  vendesse  apenas uma
ovelha podia  chegar  atÊ o  outro lado  do  estreito.  Era uma idÊia  que o
apavorava.
     -  Mais  um  sonhador  -  disse o sujeito do guichË  ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. - NÇo tem dinheiro para viajar.

     Quando estava no guichË,  o  rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto  delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grÂvidas,
proteger os animais  contra  os lobos.  Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia.  Conhecia  o  preÚo  justo de comprar e  vender cada  um dos seus
animais.
     Resolveu voltar atÊ o estÂbulo de seu amigo pelo caminho  mais longo. A
cidade tambÊm tinha um  castelo,  e ele resolveu subir  a rampa  de  pedra e
sentar-se numa de suas muradas.  LÂ de cima ele  podia ver  a âfrica. AlguÊm
certa vez havia lhe  explicado que por ali chegaram os mouros,  que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros.  Eles
Ê que tinham trazido os ciganos.
     De l  podia ver tambÊm quase  toda  a  cidade, inclusive a praÚa  onde
havia conversado com o velho.
     "Maldita  hora em  que encontrei este velho",  pensou  ele.  Tinha  ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o  velho
davam qualquer import×ncia  para  o  fato de  que ele  era  um pastor.  Eram
pessoas solitÂrias, que j nÇo acreditavam mais na vida, e nÇo entendiam que
os pastores terminam apegados Ás suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma  delas: sabia qual mancava, qual iria  dar  cria daqui  a dois meses,  e
quais eram as  mais preguiÚosas.  Sabia  tambÊm  como  tosquiÂ-las,  e  como
matÂ-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
     Um vento comeÚou a soprar.  Ele  conhecia  aquele vento:  as pessoas  o
chamavam  de  Levante,  porque com  este vento chegaram  tambÊm as hordas de
infiÊis. AtÊ  conhecer Tarifa, nunca havia pensado  que a âfrica estava  tÇo
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
     O  Levante  comeÚou a  soprar mais forte.  "Estou  entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado  e  alguma coisa  que gostaria de ter. Havia tambÊm a filha do
comerciante, mas  ela nÇo era  tÇo  importante como as  ovelhas, porque  nÇo
dependia dele. Talvez  sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se nÇo
aparecesse  daqui  a dois dias, a menina nÇo iria notar: para  ela todos  os
dias eram iguais, e quando todos  os dias ficam iguais,  Ê porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre  que o
sol cruza o cÊu.
     "Eu larguei meu  pai, minha  mÇe, e o castelo  da minha cidade. Eles se
acostumaram  e  eu me acostumei.  As ovelhas tambÊm vÇo  se acostumar  com a
minha falta", pensou o rapaz.
     De l de cima ele olhou  a praÚa. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um  jovem casal sentou-se no banco onde ele havia  conversado com o
velho, e deram um longo beijo.


     "O pipoqueiro", disse para si  mesmo, sem completar  a frase. Porque  o
Levante havia comeÚado a soprar com mais forÚa, e ele ficou sentindo o vento
no  rosto. Ele  trazia os mouros,  Ê  verdade, mas tambÊm trazia o cheiro do
deserto  e das mulheres cobertas com vÊu.  Trazia  o  suor e  os  sonhos dos
homens que um dia  haviam partido em  busca  do  desconhecido, de  ouro,  de
aventuras - e de pir×mides. O rapaz comeÚou a invejar a liberdade do  vento,
e  percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prÕprio. As
ovelhas,  a  filha  do comerciante,  os campos de  Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.







     No dia seguinte  o rapaz  encontrou-se com  o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
     -  Estou surpreso -  disse  ele.  - Meu amigo  comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira  havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
     - ê sempre assim - disse o velho. - Chamamos de PrincÎpio FavorÂvel. Se
vocË for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza ir ganhar.
Sorte de principiante.
     - E por que?
     - Porque a vida quer que vocË viva sua Lenda Pessoal.
     Depois comeÚou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O  rapaz  explicou que isto nÇo  tinha import×ncia, porque  ela era  a  mais
inteligente, e produzia bastante lÇ.
     - Onde est o tesouro? - perguntou.
     - O tesouro est no Egito, perto das Pir×mides.
     O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas nÇo tinha
cobrado nada.
     - Para chegar atÊ ele, vocË ter que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. ê sÕ ler o que ele escreveu para
vocË.
     Antes  que  o  rapaz dissesse  alguma  coisa,  uma  mariposa  comeÚou a
esvoaÚar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avÆ; quando ele era crianÚa,
seu avÆ  lhe dissera  que  as  mariposas eram  sinal de boa  sorte. Como  os
grilos, as esperanÚas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
     -  Isto - disse o velho,  que  era  capaz  de ler seus  pensamentos.  -
Exatamente como seu avÆ lhe ensinou. Estes sÇo os sinais.
     Depois o velho  abriu o  manto que  lhe  cobria o peito. O rapaz  ficou
impressionado com o que viu, e  lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O  velho  tinha  um  peitoral  de ouro  maciÚo, coberto de  pedras
preciosas.
     Era realmente um rei.  Devia  estar disfarÚado  assim  para  fugir  dos
salteadores.
     - Tome - disse o velho, tirando  uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral  de ouro.  - Chamam-se Urim e  Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "nÇo". Quando vocË nÇo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. FaÚa sempre uma pergunta objetiva.
     "Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisÈes.  O tesouro estÂ
nas Pir×mides e isto  vocË j  sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisÇo".
     O rapaz  guardou as pedras no  alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prÕprias decisÈes.
     - NÇo  se  esqueÚa  de que  tudo  Ê  uma coisa  sÕ. NÇo  se esqueÚa  da
linguagem dos  sinais.  E, sobretudo, nÇo  se esqueÚa de ir atÊ o fim de sua
Lenda Pessoal.
     "Antes, porÊm, gostaria de contar-lhe uma pequena histÕria.
     "Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo  da Felicidade
com  o  mais sÂbio de  todos os homens.  O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,


     atÊ chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. LÂ vivia o SÂbio
que o rapaz buscava.
     "Ao invÊs de encontrar um homem santo, porÊm, o nosso herÕi entrou numa
sala  e viu  uma atividade  imensa;  mercadores  entravam e  saÎam,  pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena  orquestra tocava  melodias  suaves, e
havia uma  farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regiÇo do mundo.
O SÂbio conversava  com todos,  e o rapaz teve que esperar  duas  horas  atÊ
chegar sua vez de ser atendido.
     "O SÂbio ouviu atentamente o motivo  da visita do rapaz,  mas disse-lhe
que naquele momento nÇo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que  o rapaz desse um passeio por  seu palÂcio,  e  voltasse daqui a
duas horas.
     "- Entretanto, quero lhe pedir um favor - completou o SÂbio, entregando
ao rapaz uma  colher de chÂ, onde pingou duas gotas de Õleo. - Enquanto vocË
estiver  caminhando,  carregue  esta  colher  sem  deixar  que o  Õleo  seja
derramado.
     "O rapaz comeÚou a subir  e  descer as escadarias  do palÂcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou Á presenÚa
do SÂbio.
     "- EntÇo -  perguntou  o  SÂbio - vocË  viu as tapeÚarias da PÊrsia que
estÇo na minha sala de jantar? Viu  o jardim  que o  Mestre dos  Jardineiros
demorou dez  anos  para  criar?  Reparou  nos  belos  pergaminhos  de  minha
biblioteca?
     "O rapaz, envergonhado, confessou  que nÇo havia visto nada. Sua  ßnica
preocupaÚÇo  era  nÇo  derramar  as  gotas  de Õleo  que o SÂbio  lhe  havia
confiado.
     "-  Pois  entÇo volte  e conheÚa as maravilhas  do  meu mundo - disse o
SÂbio. - VocË nÇo pode confiar num homem se nÇo conhece sua casa.
     "JÂ mais  tranqØilo,  o  rapaz  pegou a colher e  voltou a passear pelo
palÂcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o  requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
Á presenÚa do SÂbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
     "- Mas onde estÇo as duas gotas de Õleo que  lhe confiei? - perguntou o
SÂbio.
     "Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
     "-  Pois este Ê o ßnico conselho que  eu tenho  para lhe dar - disse  o
mais SÂbio dos  SÂbios. -  O  segredo da  felicidade  est em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de Õleo na colher".
     O rapaz ficou em silËncio.  Havia compreendido a histÕria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
     O  velho olhou  para o rapaz, e com  as duas mÇos espalmadas fez alguns
gestos  estranhos  em sua  cabeÚa. Depois,  pegou  os animais e  seguiu  seu
caminho.





     No alto da  pequena  cidade de Tarifa existe um  velho forte construÎdo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praÚa,  um
pipoqueiro, e um pedaÚo da âfrica. Melquisedec, o Rei de SalÊm, sentou-se na
murada  do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo


     do novo dono,  e excitadas com tantas mudanÚas. Tudo que  elas  queriam
era apenas comida e Âgua.
     Melquisedec  olhou  o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria  a ver  o rapaz, da  mesma  maneira como jamais  tornou  a ver
AbraÇo, depois de lhe ter cobrado o dÎzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
     Os  deuses nÇo  devem  ter  desejos,  porque  os deuses  nÇo tËm  Lenda
Pessoal.  Entretanto,  o Rei de SalÊm torceu intimamente  para  que  o rapaz
tivesse Ëxito.
     "Pena que ele  vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim,  quando  falasse  a  meu  respeito,  diria  que  sou
Melquisedec, o Rei de SalÊm."
     Depois  olhou para o  cÊu  meio arrependido:  "sei  que  Ê  vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei Ás vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".




     "Como Ê estranha a âfrica", pensou o rapaz.
     Estava sentado numa espÊcie de  bar igual a outros bares que ele  havia
encontrado  nas ruelas  estreitas  da  cidade.  Algumas  pessoas fumavam  um
cachimbo  gigante, que era passado de  boca em boca. Em poucas  horas  havia
visto homens  de  mÇos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e comeÚavam a cantar - enquanto todos Á sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabeÚa no solo.
     "Coisa de infiÊis", disse para si mesmo. Quando  crianÚa, via sempre na
igreja  da sua  aldeia uma imagem de  SÇo Santiago Matamouros em  seu cavalo
branco, com  a espada desembainhada, e figuras como aquelas  debaixo de seus
pÊs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente  sÕ.  Os infiÊis  tinham um olhar
sinistro.
     AlÊm  disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um ßnico detalhe, que podia  afastÂ-lo  do  seu  tesouro  por  muito  tempo:
naquele paÎs todos falavam Ârabe.
     O dono do  bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um ch amargo. O rapaz preferia beber vinho.
     Mas nÇo devia  preocupar-se com isto agora. Tinha que  pensar apenas no
seu  tesouro,  e  a maneira de  consegui-lo. A venda das ovelhas  lhe  havia
deixado com  bastante dinheiro  no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mÂgico: com ele ninguÊm jamais est sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pir×mides. Um  velho, com todo aquele ouro no peito,
nÇo precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
     O velho  lhe  havia falado  de  sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim,  sabia do que  ele estava  falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia,  havia se acostumado a ler na
terra  e nos cÊus as condiÚÈes do caminho  que  devia seguir. Aprendera  que
certo pÂssaro  indicava uma cobra  por perto,  e que determinado arbusto era
sinal de Âgua daqui  a  alguns quilÆmetros.  As ovelhas  lhe haviam ensinado
isto.
     "Se  Deus  conduz  tÇo  bem  as  ovelhas,  tambÊm conduzir  o  homem",
refletiu, e ficou mais tranqØilo. O ch parecia menos amargo.
     - Quem Ê vocË? - ouviu uma voz em espanhol.
     O rapaz ficou imensamente aliviado.  Estava pensando em sinais e alguÊm
tinha aparecido.
     - Como  vocË fala espanhol? - perguntou.  O recÊm-chegado era  um rapaz
vestido Á maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava  que  devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
     - Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos h apenas duas  horas da
Espanha.
     - Sente-se e  peÚa alguma coisa por minha conta  - disse o rapaz.  -  E
peÚa um vinho para mim. Detesto este chÂ.
     -  NÇo h  vinho no paÎs  -  disse  o recÊm-chegado. - A  religiÇo  nÇo
permite.
     O  rapaz disse entÇo  que precisava chegar  atÊ  as Pir×mides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu  ficar calado. SenÇo era bem capaz do Ârabe
querer uma parte para levÂ-lo atÊ  lÂ. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
     - Gostaria que me levasse atÊ lÂ, se puder. Posso lhe pagar como guia.
     - VocË tem idÊia de como chegar atÊ lÂ?


     O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a  conversa. Sentia-se incomodado  com a presenÚa dele. Mas tinha encontrado
um guia, e nÇo ia perder esta oportunidade.
     -  VocË  tem  que  atravessar  todo  o  deserto  de  Saara  -  disse  o
recÊm-chegado. - E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocË tem
dinheiro suficiente.
     O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
     Tirou  seu dinheiro do bolso e mostrou ao  recÊm-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou  tambÊm. Os  dois trocaram algumas palavras em Ârabe. O
dono do bar parecia irritado.
     - Vamos embora - disse o recÊm-chegado.
     - Ele nÇo quer que continuemos aqui.
     O rapaz ficou aliviado.  Levantou-se  para pagar a  conta, mas o dono o
agarrou e  comeÚou  a falar  sem parar. O rapaz  era  forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi  seu  novo  amigo que empurrou o dono para o  lado  e
puxou o rapaz para fora.
     -  Ele queria seu dinheiro  - disse. - T×nger nÇo  Ê igual ao resto  da
âfrica. Estamos num porto e os portos tËm sempre muito ladrÈes.
     Ele podia confiar em seu  novo  amigo. Tinha  lhe ajudado numa situaÚÇo
crÎtica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
     -  Podemos chegar  amanhÇ nas  Pir×mides  - disse o  outro,  pegando  o
dinheiro. - Mas preciso comprar dois camelos.
     SaÎram andando pelas ruas  estreitas  de  T×nger.  Em todo canto haviam
barracas de coisas  para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praÚa,
onde  funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortaliÚas misturadas com  adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o  rapaz  nÇo  tirava o olho de  seu  novo amigo.  Afinal  de
contas,  ele  estava com todo o seu dinheiro nas  mÇos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele nÇo conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
     "Basta vigiÂ-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
     De repente, no  meio de toda aquela confusÇo, estava a mais bela espada
que  seus olhos  j haviam  visto. A bainha era  prateada, e o  cabo  negro,
cravejado  de pedras. O  rapaz prometeu a  si mesmo que, quando voltasse  do
Egito, ia comprar aquela espada.
     - Pergunte ao dono  da barraca quanto  custa  - disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distraÎdo, olhando a espada.
     Seu  coraÚÇo  ficou  pequeno,  como  se  o  peito  tivesse  subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia  o que ia encontrar.
Os  olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atÊ que
o rapaz tomou coragem e se virou.
     Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelÇs, as  alfaces junto Ás bandejas de cobre, os
homens de mÇos  dadas pelas ruas, as  mulheres  de  vÊu, o cheiro  de comida
estranha,  e  em  nenhum lugar, mas em  nenhum lugar mesmo, o rosto  de  seu
companheiro.

     O rapaz ainda  quis  pensar que  haviam se perdido por  acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que  o  outro  voltasse.  Pouco  tempo depois  um
sujeito subiu numa  daquelas  torres e  comeÚou a cantar;  todas as  pessoas
ajoelharam-se no chÇo,  bateram com  a  cabeÚa no  solo,  e cantaram tambÊm.
Depois, como um bando de formigas  trabalhadoras,  desfizeram  as barracas e
foram embora.


     O  sol comeÚou a ir embora  tambÊm.  O rapaz olhou o  sol durante muito
tempo, atÊ que  ele se escondeu atrÂs das casas brancas que davam a volta na
praÚa. Lembrou-se  que quando  aquele sol nascera  de manhÇ, ele  estava  em
outro continente,  era  um pastor,  tinha  sessenta  ovelhas,  e um encontro
marcado  com uma moÚa. De manhÇ ele sabia tudo  que iria acontecer  enquanto
andava pelos campos.
     Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num paÎs diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lÎngua que
falavam.  JÂ nÇo  era um pastor, e  nÇo tinha mais nada  na  vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e comeÚar tudo de novo.
     "Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" - pensou o  rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque Ás vezes as coisas mudam na vida no espaÚo
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
     Tinha  vergonha  de chorar. Jamais  havia chorado  na  frente  de  suas
prÕprias  ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e  ele estava longe da
pÂtria.
     O  rapaz chorou.  Chorou porque  Deus era  injusto,  e retribuÎa  desta
maneira Ás  pessoas que  acreditavam  em seus  prÕprios sonhos.  "Quando  eu
estava  com  as ovelhas eu era feliz,  e espalhava sempre felicidade Á minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
     "Mas agora estou  triste  e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
nÇo  vou confiar  nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram  tesouros escondidos, porque eu nÇo encontrei o  meu.  E vou
sempre procurar  manter o  pouco que tenho, porque  sou pequeno demais  para
abraÚar o mundo".

     Abriu  seu  alforje para  ver o  que  tinha  l  dentro; talvez tivesse
sobrado  alguma  coisa  do  sanduÎche que havia  comido  no  barco.  Mas  sÕ
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
     Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensaÚÇo de alÎvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, saÎdas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais  esperto",
pensou  o  rapaz, tirando as  pedras  do alforje para escondË-las dentro  do
bolso. Ali era um  porto, e esta  era a ßnica verdade que  aquele  homem lhe
dissera; um porto est sempre cheio de ladrÈes.
     Agora entendia tambÊm  o  desespero  do  dono do  bar: estava  tentando
dizer- lhe para nÇo confiar naquele homem. "Sou como  todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e nÇo da maneira
que as coisas acontecem".
     Ficou olhando  as  pedras.  Tocou  com  cuidado cada  uma,  sentindo  a
temperatura e a superfÎcie lisa. Elas  eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqØilidade. Elas lhe lembravam do velho.
     "Quando vocË quer uma coisa,  todo o  Universo conspira para que  possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
     Queria entender como aquilo podia ser  verdade.  Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que  tinha encontrado  um rei - um rei que sabia a
sua histÕria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiËncia sexual.
     "As pedras  servem para adivinhaÚÇo.  Chamam-se Urim e  Tumim". O rapaz
colocou  de novo as pedras dentro do  saco e resolveu experimentar. O  velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sÕ  serviam para
quem sabe o que quer.


     O rapaz entÇo perguntou se a bËnÚÇo do velho continuava ainda com ele.
     Tirou uma das pedras. Era "sim".
     "Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
     Enfiou a  mÇo no alforje e  ia  pegando  uma  das  pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no  tecido. O  rapaz nunca havia  percebido  que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocÂ-los
de novo dentro do saco. Ao  vË-las no chÇo, porÊm, uma outra frase surgiu em
sua cabeÚa.
     "Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
     Um sinal.  O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas  pedras no
chÇo e as recolocou no  alforje.  NÇo pensava  costurar o buraco - as pedras
poderiam  escapar  por ali  sempre que desejassem. Ele havia  entendido  que
certas coisas  a  gente  nÇo devia  perguntar -  para  nÇo  fugir do prÕprio
destino. "Prometi tomar minhas prÕprias decisÈes", disse para si mesmo.
     Mas  as pedras tinham dito que o velho, continuava com  ele, e isto lhe
deu  mais  confianÚa.  Olhou de novo para o  mercado  vazio, e nÇo  sentiu o
desespero de antes. NÇo era um mundo estranho; era um mundo novo.
     Pois, afinal de  contas,  tudo  que ele  queria  era  exatamente  isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais  chegasse  atÊ as Pir×mides, ele
j tinha  ido muito mais longe do que  qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles  soubessem que  a apenas  duas horas  de  barco  existem tantas  coisas
diferentes".
     O  mundo novo aparecia  na sua frente sob a forma  de um mercado vazio,
mas ele j  vira aquele mercado cheio de vida,  e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada - foi um preÚo caro  contemplÂ-la um pouco,  mas tambÊm
nunca  tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vÎtima de um ladrÇo, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
     "Sou um aventureiro  em  busca de  um tesouro", pensou,  antes  de cair
exausto no sono.


     Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela praÚa estava prestes a recomeÚar de novo.
     Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invÊs de sentir-se triste, ficou feliz. NÇo  tinha mais que seguir
em busca de Âgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. NÇo tinha um
centavo no bolso, mas tinha fÊ na vida. Havia  escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
     ComeÚou a andar  sem pressa  pela praÚa. Os mercadores colocaram em  pÊ
suas barracas; ajudou um doceiro a  montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto  daquele  doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
comeÚar um bom  dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho  e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro nÇo
est  fazendo doces porque quer viajar,  ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o  rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho - saber se uma pessoa estÂ
prÕxima ou distante de sua  Lenda Pessoal. SÕ em olhar para ela. "ê fÂcil, e
eu nunca havia percebido isto."
     Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro  lhe estendeu o primeiro
doce que  havia  feito. O rapaz comeu  satisfeito, agradeceu,  e seguiu  seu
caminho. Quando jÂ


     havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando Ârabe e a outra, espanhol.
     E tinham se entendido perfeitamente.
     "Existe uma linguagem que est alÊm das palavras", pensou o  rapaz. "Eu
j experimentei  isto com  as ovelhas, e agora  estou  experimentando com os
homens."
     Estava  aprendendo  vÂrias  coisas  novas.  Coisas  que  ele  j  havia
experimentado, e que no  entanto  eram novas, porque tinham passado  por ele
que  tivesse percebido. E  nÇo tinha percebido, porque estava acostumado com
elas.  "Se  eu  aprender a  decifrar esta  linguagem  sem  palavras,  eu vou
conseguir decifrar o mundo".
     "Tudo Ê uma coisa sÕ", falava o velho.
     Resolveu  andar  sem pressa  e  sem  ansiedade  pelas pequenas  ruas de
T×nger: sÕ desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia  muita
paciËncia, mas esta Ê a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando  naquele mundo  estranho as mesmas liÚÈes  que
suas ovelhas lhe ensinaram.
     "Tudo Ê uma coisa sÕ", havia falado o velho.




     O  Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angßstia que
experimentava  todas as manhÇs. Estava h quase  trinta anos  naquele  mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer  coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e  comprar  cristais. Houve um tempo em que  muita gente conhecia
sua loja: mercadores Ârabes, geÕlogos franceses e ingleses, soldados alemÇes
sempre com dinheiro no  bolso. Naquela Êpoca era uma grande  aventura vender
cristais, e ele pensava como ia  ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
     Depois  o tempo foi passando, e a cidade tambÊm. Ceuta cresceu mais que
T×nger, e o comÊrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas  na ladeira. NinguÊm ia subir  uma ladeira por  causa  de umas
poucas lojas.
     Mas o Mercador de Cristais nÇo tinha escolha.  Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo peÚas de cristal, e  agora era tarde demais
para mudar de rumo.
     Durante a manhÇ inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo h anos, e j sabia o horÂrio de cada pessoa. Quando  faltavam alguns
minutos para o almoÚo, um  rapaz estrangeiro parou diante  de  sua  vitrine.
Estava vestido  normalmente,  mas os  olhos  experimentados  do  Mercador de
Cristais concluÎram que ele nÇo tinha dinheiro. Mesmo  assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, atÊ que o rapaz fosse embora.






     Havia um  cartaz na porta dizendo  que ali se falavam vÂrias lÎnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrÂs do balcÇo.
     - Posso limpar estes vasos se vocË quiser - disse o rapaz. - Assim como
eles estÇo, nenhum comprador vai querer comprar.
     O homem olhou sem dizer nada
     - Em troca, vocË me paga um prato de comida.
     O homem continuou em silËncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisÇo. Dentro de seu alforje havia o casaco - nÇo ia precisar mais dele no
deserto.  Tirou  o casaco e  comeÚou a limpar os  vasos.  Durante  meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
     Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
     - Vamos comer - disse o Mercador de Cristais.
     Colocou uma tabuleta na porta, e  foram atÊ um minßsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na ßnica mesa  existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
     - NÇo era preciso limpar nada - disse. - A  lei do AlcorÇo obriga a dar
de comer a quem tem fome.
     - EntÇo por que me deixou fazer isto? - perguntou o rapaz.
     - Porque os cristais  estavam sujos. E  tanto vocË como eu precisÂvamos
limpar as cabeÚas dos maus pensamentos.
     Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
     -  Queria que  vocË trabalhasse na  minha  loja  . Hoje  entraram  dois
fregueses enquanto vocË limpava os vasos, e isto Ê um bom sinal.
     "As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas  nÇo percebem
o que estÇo dizendo. Da mesma maneira que eu nÇo percebia que h muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
     - Quer trabalhar para mim? - insistiu o Mercador.
     - Posso trabalhar o resto do dia - respondeu o rapaz. - Limparei atÊ de
madrugada  todos os cristais  da  loja. Em  troca, preciso  de dinheiro para
estar amanhÇ no Egito.
     O velho riu de novo.
     - Mesmo que vocË  limpasse meus cristais  durante um ano inteiro, mesmo
que vocË ganhasse uma boa comissÇo de vendas  em cada um deles, ainda ia ter
que  arranjar  dinheiro  emprestado para ir  ao Egito.  Existem  milhares de
quilÆmetros de deserto entre T×nger e as Pir×mides.

     Houve  um momento de  silËncio tÇo  grande,  que a  cidade  parecia ter
adormecido. JÂ nÇo haviam mais  os bazares, as discussÈes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas  com seus punhos
cravejados. JÂ nÇo havia mais a esperanÚa e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais,  o tesouro  e  as  pir×mides.  Era como se todo o mundo  estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silËncio. NÇo  havia. nem  dor, nem
sofrimento,  nem decepÚÇo: apenas um olhar vazio atravÊs da pequena porta do
bar,  e  uma  vontade  imensa  de morrer,  de que tudo  acabasse para sempre
naquele minuto.



     O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhÇ houvesse subitamente desaparecido.
     - Posso lhe dar  dinheiro para voltar  Á sua terra, meu filho - disse o
Mercador de Cristais.
     O rapaz continuou em silËncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
     - Vou trabalhar com o senhor - disse.
     E depois de outro silËncio demorado, concluiu:
     - Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.









     HÂ quase um mËs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e nÇo  era  exatamente o  tipo de  emprego que lhe  fazia feliz.  O Mercador
passava  o  dia  inteiro  resmungando  atrÂs do balcÇo, pedindo que  tomasse
cuidado com as peÚas, que nÇo deixasse quebrar nada.
     Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
nÇo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissÇo em cada peÚa vendida, e jÂ
havia  conseguido  juntar algum dinheiro.  Naquela manhÇ  havia feito certos
cÂlculos: se continuasse  a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
     -  Gostaria  de fazer uma estante para os cristais  -  disse o rapaz ao
Mercador.  -  Ela pode  ser colocada do  lado  de  fora, e  atrair quem estÂ
passando l embaixo da ladeira.
     -  Nunca fiz uma estante antes  - respondeu o  Mercador.  - As  pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
     - Quando  eu  andava pelo  campo com  as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma  cobra.  Mas isto  faz  parte  da  vida das  ovelhas e  dos
pastores.
     O  Mercador atendeu  um freguËs  que desejava trËs  vasos  de  cristal.
Estava vendendo  melhor do  que nunca,  como  se o  mundo tivesse voltado no
tempo, para a Êpoca em que a rua era uma das principais atraÚÈes de T×nger.
     - O movimento j melhorou bastante - disse  ao  rapaz, quando o freguËs
saiu.  -  O dinheiro  permite que  eu viva melhor, e  lhe devolver  as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
     - Porque  temos que seguir os sinais - falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia  encontrado um
rei.
     "Chama-se PrincÎpio FavorÂvel,  sorte  de  principiante.  Porque a vida
quer que vocË viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
     O  Mercador,  entretanto, estava entendendo o  que  o rapaz  falava.  A
simples presenÚa dele na loja era  um  sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele nÇo estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o  rapaz estivesse ganhando mais do que  devia; como ele
sempre havia achado  que  as vendas nÇo  mudavam  mais, tinha oferecido  uma
comissÇo alta,  e sua intuiÚÇo dizia que em breve o garoto estaria de  volta
Ás suas ovelhas.
     -  Por que vocË queria conhecer as Pir×mides? - perguntou, para mudar o
assunto da estante.
     - Porque sempre me falaram nelas - disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o  tesouro era uma lembranÚa sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
     - Eu nÇo conheÚo ninguÊm aqui que queira atravessar  o deserto sÕ  para
conhecer as Pir×mides - disse o  Mercador.  - SÇo apenas um monte de pedras.
VocË pode construir uma no seu quintal.
     - VocË nunca teve  sonhos de viajar - disse o rapaz, atendendo mais  um
freguËs que entrava na loja.





     Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
     -  NÇo  gosto de mudanÚas - disse o  Mercador. - Nem eu nem  vocË somos
como Hassan, o  rico  comerciante. Se ele erra numa compra, isto nÇo o afeta
muito. Mas nÕs dois temos sempre que conviver com nossos erros.
     "ê verdade", pensou o rapaz.
     - Para que vocË quer a estante? - disse o Mercador.
     -  Quero voltar mais rÂpido para minhas ovelhas.  Temos  que aproveitar
quando a sorte  est do  nosso lado, e fazer  tudo  para ajudÂ-la  da  mesma
maneira que ela  est nos ajudando.  Chama-se PrincÎpio FavorÂvel. Ou "sorte
de principiante".
     O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
     -  O Profeta nos deu o AlcorÇo,  e  nos deixou apenas  cinco obrigaÚÈes
para serem seguidas em nossa existËncia. A mais  importante Ê a seguinte: sÕ
existe um Deus. As outras sÇo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mËs
de RamadÇ, fazer caridade com os pobres.
     Parou  de falar. Seus olhos ficaram cheios de Âgua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso,  e mesmo com toda a sua impaciËncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei muÚulmana.
     - E qual a quinta obrigaÚÇo? - perguntou o rapaz.
     - HÂ dois dias  atrÂs vocË disse que eu nunca  tive  sonhos de viajar -
respondeu o Mercador.  - A quinta obrigaÚÇo de todo muÚulmano Ê  uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, Á cidade sagrada de Meca.
     "Meca Ê muito mais longe que as Pir×mides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que  tinha para  comeÚar  esta loja.  Pensava em ser
rico  algum  dia, para ir  a Meca. Passei a  ganhar dinheiro, mas nÇo  podia
deixar  ninguÊm  cuidando  dos  cristais,  porque  os  cristais  sÇo  coisas
delicadas.  Ao mesmo tempo, via  passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na direÚÇo de  Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um sÊquito de criados e de camelos, mas a maior  parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
     "Todas iam  e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
sÎmbolos da peregrinaÚÇo.  Uma delas, um sapateiro que vivia de  remendar as
botas alheias,  me disse que havia caminhado quase  um ano pelo deserto, mas
que  ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirÈes
em T×nger para comprar couro".
     - Por que nÇo vai a Meca agora? - perguntou o rapaz.
     - Porque Meca Ê o que  me mantÊm  vivo.  ê o  que me faz agØentar todos
estes dias iguais, estes vasos  calados nas prateleiras, o almoÚo e o jantar
naquele restaurante horrÎvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois nÇo
ter mais motivos para continuar vivo.
     "VocË  sonha com  ovelhas e com pir×mides. ê  diferente de mim,  porque
deseja  realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com  Meca. JÂ  imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praÚa onde est a
Pedra Sagrada, as sete voltas que  devo dar em torno dela antes de  tocÂ-la.
JÂ  imaginei quais  pessoas estarÇo  do  meu lado,  na  minha frente,  e  as
conversas e oraÚÈes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decepÚÇo, entÇo prefiro apenas sonhar".
     Neste dia, o Mercador deu permissÇo  ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.








     Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses Á loja
dos cristais. O rapaz  calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar Á Espanha e comprar sessenta  ovelhas,  e  mais  sessenta ovelhas. Em
menos de um ano  ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
Ârabes,  porque j conseguia  falar aquela  lÎngua  estranha. Depois daquela
manhÇ no mercado, ele  nÇo  havia mais utilizado o Urim e o  Tumim, porque o
Egito  passou a ser apenas um sonho tÇo distante  para ele como era a cidade
de Meca para o  Mercador. Entretanto, o  rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia  em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
     "Lembre-se de saber  sempre o que  quer", havia falado o velho  rei.  O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar Áquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar  o nßmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
     Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes,  como
o  comÊrcio  de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem  no alto  da ladeira,  reclamando que  era impossÎvel encontrar  um
lugar decente para beber alguma  coisa depois  de toda a subida. O rapaz  jÂ
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
     - Vamos vender ch para as pessoas que sobem a ladeira - disse ele.
     - Muitas pessoas vendem ch por aqui - respondeu o Mercador.
     -  Podemos vender ch em vasos  de cristal. Assim as pessoas vÇo gostar
do chÂ, e vÇo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz  os homens
Ê a beleza.
     O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo.  NÇo respondeu nada.
Mas naquela  tarde, depois de  fazer suas oraÚÈes e fechar a loja, sentou-se
na calÚada com ele e convidou-o a fumar narguilÊ  - aquele estranho cachimbo
que os Ârabes usavam.
     - O que vocË est procurando? - perguntou o velho Mercador de Cristais.
     - JÂ  lhe  disse.  Preciso comprar de volta as ovelhas.  E para isto  Ê
necessÂrio dinheiro.
     O  velho colocou  algumas  brasas  novas no  narguilÊ,  e deu uma longa
tragada.
     - HÂ trinta anos  tenho  esta loja. ConheÚo o bom  e  o mau cristal,  e
conheÚo  todos os detalhes  do seu funcionamento.  Estou  acostumado com seu
tamanho  e seu movimento.  Se  vocË  colocar  ch  em cristais, a  loja  irÂ
crescer. EntÇo eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
     - E isto nÇo Ê bom?
     - Estou acostumado com minha  vida. Antes de vocË, eu pensava que havia
perdido  tanto tempo  no  mesmo lugar,  enquanto meus amigos todos  mudavam,
quebravam,  ou progrediam Isto me deixava com  uma imensa tristeza. Agora eu
sei que nÇo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. NÇo  quero mudar,  porque  nÇo sei  como mudar.  JÂ estou muito
acostumado comigo mesmo.
     O rapaz nÇo sabia o que dizer. O velho entÇo continuou:
     - VocË foi uma bËnÚÇo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bËnÚÇo que nÇo Ê aceita, transforma-se numa  maldiÚÇo. Eu nÇo  quero mais da
vida.  E vocË est  me forÚando  a  ver  riquezas e  horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conheÚo, e  que conheÚo minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me  sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
nÇo quero.


     "Ainda bem que eu nÇo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
     Continuaram fumando  o  narguilÊ  por algum tempo,  enquanto  o  sol se
escondia. Estavam conversando em Ârabe, e o rapaz estava  satisfeito consigo
mesmo, porque falava Ârabe. Houve uma Êpoca em  que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas nÇo sabiam ensinar Ârabe.
     "Devem ter outras  coisas no mundo  que as ovelhas nÇo sabem  ensinar",
pensou  o  rapaz, enquanto  olhava o Mercador  em silËncio. "Porque elas  sÕ
estÇo em busca de Âgua e comida.
     "Acho que nÇo sÇo elas que ensinam: eu Ê que aprendo".
     - Maktub - disse finalmente o mercador.
     - O que Ê isto?
     - VocË precisaria ter nascido Ârabe para compreender - respondeu ele. -
Mas a traduÚÇo seria algo como "est escrito".
     E  enquanto  apagava as brasas  do narguilÊ,  disse  que o  rapaz podia
comeÚar a vender ch nos vasos. ás vezes, Ê impossÎvel deter o rio da vida.


     Os homens subiam a ladeira e ficavam  cansados. EntÇo, l no seu  topo,
havia uma loja  de belos  cristais  com  ch de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chÂ, que era servido em lindos vasos de cristal.
     "Jamais minha  mulher pensou nisto", lembrava  um,  e  comprava  alguns
cristais,  porque ia  ter  visitas naquela  noite: seus convidados  ficariam
impressionados com a riqueza das taÚas. Outro  homem passou a garantir que o
ch  era  sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o  aroma. Um  terceiro  disse  ainda  que era tradiÚÇo no
Oriente utilizar  vasos  de cristal junto com chÂ, por causa de seus poderes
mÂgicos.
     Em  pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas  pessoas  passaram  a
subir atÊ o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo  de
novo num comÊrcio tÇo antigo. Outras  lojas de ch em copos de cristal foram
abertas, mas  nÇo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam  sempre
vazias.
     Em  pouco tempo, o  Mercador teve que contratar  mais dois  empregados.
Passou a  importar, junto com os  cristais, quantidades  enormes de chÂ, que
eram  diariamente  consumidas  pelos homens e mulheres  com  sede de  coisas
novas.
     E assim transcorreram seis meses.






     O  rapaz acordou antes do  sol nascer. Tinham-se passado  onze meses  e
nove  dias  desde  que  ele havia  pisado pela  primeira vez  no  continente
africano.
     Vestiu sua  roupa  Ârabe, de linho branco, comprada especialmente  para
aquele  dia.  Colocou o lenÚo na cabeÚa, fixo por  um anel feito de  pele de
camelo. CalÚou as sandÂlias novas, e desceu sem fazer qualquer ruÎdo.
     A cidade ainda dormia. Ele fez  um  sanduÎche de  gergelim, e bebeu chÂ
quente  no vaso de cristal. Depois  sentou-se  na soleira da porta,  fumando
sozinho o narguilÊ.
     Fumou em silËncio, sem pensar em nada, escutando  apenas o ruÎdo sempre
constante  do  vento  que  soprava  trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de  f'umar, enfiou  a mÇo  num dos bolsos  do traje, e  ficou  alguns
instantes contemplando o que havia retirado l de dentro.
     Havia um  grande  maÚo de dinheiro. O suficiente para comprar  cento  e
vinte  ovelhas, uma  passagem de  volta, e uma licenÚa de comÊrcio entre seu
paÎs e o paÎs onde estava.
     Esperou pacientemente que o velho acordasse e  abrisse  a loja. Os dois
entÇo foram juntos tomar mais chÂ.
     - Vou embora hoje - disse o rapaz. - Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. VocË tem dinheiro para ir Á Meca.
     O velho nÇo disse nada.
     - PeÚo sua bËnÚÇo - insistiu o rapaz. - VocË me ajudou.
     O  velho continuou  a  preparar o ch em silËncio.  Depois de  um certo
tempo, porÊm, virou-se para o rapaz.
     - Tenho orgulho de vocË - disse. - VocË  trouxe alma para a  minha loja
de cristais.  Mas sabe que  eu nÇo vou  Á Meca. Como sabe que nÇo  voltar a
comprar ovelhas.
     - Quem lhe disse isto? - perguntou o rapaz, assustado.
     - Maktub - disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
     E o abenÚoou.


     O rapaz  foi atÊ seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram  trËs sacolas
cheias. Quando j estava saindo, notou  que,  num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava  todo amassado, e ele quase nem  se lembrava
mais dele. LÂ dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando  em dar de presente para um rapaz na  rua, as duas pedras
rolaram pelo chÇo. O Urim e o Tumim.
     O rapaz  entÇo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber hÂ
quanto tempo nÇo pensava  mais nisto.  Durante  um ano havia  trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para nÇo voltar de cabeÚa baixa
para a Espanha.
     "Nunca  desista  dos seus sonhos", havia falado o  velho  rei. "Siga os
sinais".
     O  rapaz pegou o  Urim e  o  Tumim no  chÇo, e  teve  novamente  aquela
estranha sensaÚÇo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
     "Vou  voltar exatamente  a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E  as
ovelhas nÇo me ensinaram a falar Ârabe".


     As   ovelhas,   entretanto,  tinham   ensinado  uma  coisa  muito  mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com  amor e com vontade, em
busca  de algo que se  desejava ou em que se  acreditava.  T×nger j nÇo era
mais  uma  cidade  estranha, e ele  sentiu que  da  mesma maneira  que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
     "Quando vocË deseja  uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizÂ-la", havia falado o velho rei.
     Mas o velho rei nÇo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus  sonhos mas nÇo desejam  realizÂ-los.  O velho rei  nÇo
havia falado que as Pir×mides eram apenas  um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que,  quando se tem  dinheiro  para comprar um rebanho  maior do  que o  que
possuÎa, deve-se comprar este rebanho.
     O  rapaz pegou o  alforje  e  juntou com seus outros  sacos.  Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses  andavam pela  loja, tomando  ch em vasos de cristal. Era um  bom
movimento para  aquela  hora  da manhÇ.  Do  lugar  onde estava,  notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito  o cabelo do velho rei.
Lembrou-se  do  sorriso do  doceiro, no primeira dia  em  T×nger, quando nÇo
tinha para onde ir  nem o  que comer; tambÊm aquele sorriso lembrava o velho
rei.
     "Como se ele tivesse passado por aqui e  deixado uma marca", pensou. "E
cada  pessoa  nÇo tivesse j conhecido  este rei  em algum  momento de  suas
existËncias. Afinal de  contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".

     Saiu sem se despedir do Mercador de  Cristais. NÇo queria chorar porque
as  pessoas podiam ver. Mas  ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido.  Estava  mais confiante  em si  e  tinha
vontade de conquistar o mundo.
     "Mas  estou indo para os campos que  j conheÚo,  conduzir de  novo  as
ovelhas". E nÇo estava mais contente com sua decisÇo.  Tinha  trabalhado  um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua import×ncia. Talvez porque nÇo fosse seu sonho.
     "Quem sabe Ê melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir Á Meca, e
viver  da  vontade de conhecË-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mÇos, e estas pedras lhe  traziam a forÚa e a vontade  do velho rei. Por uma
coincidËncia  - ou  um  sinal, pensou o rapaz - ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. NÇo havia mais o  ladrÇo,  e o dono lhe  trouxe uma
xÎcara de chÂ.
     "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca  mais me  esquecerei  de como elas  sÇo. Mas talvez nÇo
tenha outra  oportunidade de chegar atÊ as Pir×mides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histÕria.  Era um rei  de verdade, um rei
sÂbio".
     Estava apenas a  duas  horas de  barco das planÎcies de Andaluzia,  mas
havia um  deserto  inteiro  entre ele as  Pir×mides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situaÚÇo:  na verdade, ele  estava duas horas
mais  perto do seu  tesouro.  Mesmo  que,  para caminhar  estas duas  horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
     "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu j conheÚo as ovelhas;
nÇo dÇo muito trabalho, e podem ser  amadas. NÇo sei  se o deserto  pode ser
amado,  mas  Ê o deserto  que esconde  o meu tesouro.  Se  eu nÇo  conseguir
encontrÂ-lo, poderei sempre voltar


     para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que nÇo?"
     Sentiu uma alegria  imensa naquele momento.  Sempre podia  voltar a ser
pastor de  ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. NÇo acontecia com qualquer pessoa.
     Estava  contente  quando  saiu do bar. Havia se  lembrado  que  um  dos
fornecedores  do Mercador trazia  os cristais em  caravanas  que  cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mÇos; por causa daquelas  duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
     "Sempre estou  perto dos que vivem a  Lenda Pessoal",  dissera  o velho
rei.
     NÇo custava  nada ir atÊ o armazÊm, saber se as Pir×mides eram  de fato
muito longe.







     O InglËs estava sentado numa construÚÇo  cheirando a animais,  suor,  e
poeira.  NÇo podia chamar  aquilo de armazÊm;  era apenas um curral. "Toda a
minha  vida  para ter  que passar por  um lugar  como este", pensou enquanto
folheava distraÎdo uma revista de quÎmica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
     Mas  era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais.  Toda a
sua vida, todos os  seus estudos foram  em  busca  da linguagem ßnica  que o
Universo  falava. Primeiro  havia se  interessado por  Esperanto, depois por
religiÈes,  e  finalmente  por Alquimia.  Sabia  falar  Esperanto,  entendia
perfeitamente as diversas  religiÈes, mas ainda nÇo era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar  coisas  importantes,  Ê  verdade.  Mas  suas  pesquisas
chegaram a  um ponto onde nÇo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vÇo
entrar em  contato  com  algum alquimista. Mas os alquimistas  eram  pessoas
estranhas, que  sÕ pensavam neles mesmos, e  quase sempre  recusavam  ajuda.
Quem sabe, nÇo haviam descoberto o segredo da Grande Obra - chamada de Pedra
Filosofal - e por isso se fechavam no silËncio.
     JÂ  havia  gasto parte  da  fortuna que seu pai  lhe  deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal.  Tinha freqØentado as melhores bibliotecas do
mundo, e  comprado  os livros mais importantes e mais raros sobre  alquimia.
Num  deles  descobriu que h muitos  anos atrÂs, um famoso alquimista  Ârabe
havia  visitado a  Europa. Diziam  que ele tinha mais de duzentos anos,  que
havia descoberto a Pedra  Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O InglËs ficou
impressionado com a  histÕria. Mas tudo nÇo teria passado de mais uma lenda,
se um amigo  seu - voltando de  uma expediÚÇo arqueolÕgica  no deserto - nÇo
lhe tivesse contado sobre um Ârabe que tinha poderes excepcionais.
     - Mora  no oÂsis de Al-Fayoum - disse seu  amigo. - E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que Ê capaz de transformar qualquer metal em ouro.
     O  InglËs nÇo coube  em  si de tanta excitaÚÇo.  Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos,  juntou  os  livros  mais importantes,  e  agora
estava  ali,  naquele armazÊm parecido com um  curral, enquanto l fora  uma
imensa caravana se preparava  para cruzar o  Saara.  A caravana  passava por
Al-Fayoum.
     "Tenho  que  conhecer  este maldito Alquimista", pensou o  InglËs.  E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerÂvel.




     Um  jovem Ârabe,  tambÊm carregado de  malas, entrou no  lugar  onde  o
InglËs estava e o cumprimentou.
     - Aonde vocË vai? - perguntou o jovem Ârabe.
     - Para o deserto - respondeu o InglËs, e voltou para a sua leitura. NÇo
queria conversar agora. Precisava recordar  tudo que havia  aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetË-lo a alguma espÊcie de prova.
     O jovem Ârabe tirou um livro e comeÚou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda  bem", pensou  o  InglËs. Sabia falar espanhol  melhor  que
Ârabe, e se este rapaz  fosse  atÊ  Al-Fayoum, ia  ter alguÊm para conversar
quando nÇo estivesse ocupado com coisas importantes.


     "Que coisa  engraÚada"  - pensou o rapaz enquanto tentava mais  uma vez
ler a cena  do  enterro que  iniciava o livro.  -  "Faz quase dois  anos que
comecei a ler, e nÇo consigo  passar destas pÂginas".  Mesmo sem um rei para
interrompË-lo,  ele  nÇo  conseguia  se concentrar.  Ainda  estava em dßvida
quanto  Á  sua  decisÇo. Mas  estava  percebendo  uma coisa  importante:  as
decisÈes  eram  apenas o  comeÚo de  alguma coisa.  Quando alguÊm tomava uma
decisÇo, na verdade estava mergulhando numa  correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
     "Quando  resolvi ir  em busca do meu  tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja  de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocÎnio.  "Da
mesma maneira, esta  caravana pode ser  uma decisÇo minha,  mas seu percurso
ser sempre um mistÊrio".
     Na sua  frente havia  um europeu tambÊm lendo um  livro.  O europeu era
antipÂtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atÊ ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
     O  rapaz fechou o livro. NÇo queria fazer nada que o deixasse  parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e comeÚou a brincar com
eles.
     O estrangeiro deu um grito:
     - Um Urim e um Tumim!
     O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
     - NÇo estÇo Á venda - disse.
     - NÇo valem muito - disse o InglËs. - SÇo cristais de rocha, nada mais.
HÂ  milhÈes de cristais de rocha na terra, mas para  quem entende, estes sÇo
Urim e Tumim. NÇo sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
     - Foi o presente de um rei - disse o rapaz.
     O estrangeiro  ficou mudo.  Depois enfiou  a  mÇo  no bolso e  retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
     - VocË falou em um rei - disse.
     - E  vocË  nÇo acredita que os reis  conversem  com  pastores - disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
     - Ao contrÂrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei  que
o resto  do mundo recusou-se a conhecer.  Por isso Ê  muito provÂvel que  os
reis conversem com pastores.
     E completou, com medo que o rapaz nÇo estivesse entendendo:


     -  Est na BÎblia. No mesmo livro  que me ensinou a  fazer este  Urim e
este Tumim.  Estas pedras  eram a ßnica  forma de adivinhaÚÇo  permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
     O rapaz ficou contente de estar naquele armazÊm.
     - Talvez isto seja um sinal - disse o InglËs, como quem pensa alto.
     - Quem lhe  falou  em  sinais?  - o interesse  do rapaz crescia a  cada
momento.
     -  Tudo  na vida sÇo  sinais -  disse o  InglËs,  desta vez fechando  a
revista que estava lendo.  O Universo Ê  feito por uma lÎngua que todo mundo
entende,  mas que j se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
alÊm de outras coisas.
     "Por isso estou aqui. Porque  tenho que  encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
     A conversa foi interrompida pelo chefe do armazÊm.
     - VocËs estÇo com sorte -  disse o Ârabe gordo. - Sai hoje Á  tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
     - Mas eu vou ao Egito - disse o rapaz.
     - Al-Fayoum Ê no Egito - disse o dono.
     - Que tipo de Ârabe vocË Ê?
     O  rapaz  disse  que  era  espanhol. O  InglËs ficou  satisfeito: mesmo
vestido como Ârabe, o rapaz pelo menos era europeu.
     - Ele chama  de "sorte" os sinais  - disse o InglËs, depois que o gordo
Ârabe saiu. - Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopÊdia sobre as
palavras  "sorte" e "coincidËncia". ê com estas palavras  que  se  escreve a
Linguagem Universal.
     Depois  comentou  com  o  rapaz   que  nÇo  havia  sido  "coincidËncia"
encontrÂ-lo com o Urim e o Tumim na mÇo. Perguntou se ele tambÊm estava indo
em busca do Alquimista.
     - Estou indo em busca  de um tesouro  - disse o  rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o InglËs pareceu nÇo dar import×ncia.
     - De certa forma, eu tambÊm estou, disse.
     - E nem  sei  o que quer dizer Alquimia  - completou  o rapaz, quando o
dono do armazÊm comeÚou a chamÂ-los para fora.





     - Eu sou o LÎder da Caravana - disse  um senhor de barba longa  e olhos
escuros. -  Tenho poder de vida e  de  morte sobre  cada pessoa que carrego.
Porque o deserto Ê uma mulher caprichosa, e Ás vezes deixa os homens loucos.
     Haviam  quase duzentas pessoas, e  o  dobro  de  animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O InglËs tinha vÂrias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres,  crianÚas,  e  vÂrios  homens  com espadas  na  cintura  e  longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o  LÎder teve
que repetir vÂrias vezes suas palavras para que todos entendessem.
     -  HÂ vÂrios homens e deuses diferentes  no coraÚÇo destes  homens. Mas
meu  ßnico Deus Ê Allah, e por ele eu juro que  farei  o possÎvel e o melhor
para  vencer mais  uma vez  o deserto. Agora quero que cada um de vocËs jure
pelo Deus em que acredita, no fundo


     do seu  coraÚÇo, de que  ir me obedecer em  qualquer circunst×ncia. No
deserto, a desobediËncia significa a morte.
     Um murmßrio correu baixo por todas as  pessoas. Estavam  jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou  por Jesus Cristo. O InglËs ficou em
silËncio. O murmßrio se estendeu um tempo maior do que uma simples  jura; as
pessoas tambÊm estavam pedindo proteÚÇo aos cÊus.
     Ouviu-se um longo toque de  clarim,  e cada um montou em seu  animal. O
rapaz  e  o  InglËs  haviam  comprado  camelos,  e  subiram  com  uma  certa
dificuldade. O rapaz ficou  com pena do camelo do  InglËs: estava  carregado
com as pesadas sacolas de livros.
     -  NÇo  existem  coincidËncias - disse o InglËs,  tentando  continuar a
conversa que haviam iniciado no armazÊm.  - Foi um amigo  que me trouxe  atÊ
aqui, porque conhecia um Ârabe, que...
     Mas a  caravana  comeÚou  a andar, e ficou  impossÎvel escutar o  que o
InglËs  estava dizendo.  Entretanto,  o rapaz  sabia  exatamente do  que  se
tratava: a cadeia misteriosa que vai  unindo uma coisa  com  a outra,  que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
âfrica, e encontrar na praÚa um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
     "Quanto mais  se  chega perto  do  sonho,  mais a Lenda  Pessoal vai se
tornando a verdadeira razÇo de viver", pensou o rapaz.





     A  caravana comeÚou a seguir  em  direÚÇo ao poente. Viajavam de manhÇ,
paravam quando o sol ficava mais forte, e  seguiam de novo ao entardecer.  O
rapaz conversava  pouco com o InglËs,  que passava a  maior parte  do  tempo
entretido pelos livros.
     EntÇo, passou a  observar em silËncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora  tudo  era  muito diferente do  dia  em  que  haviam partido:
naquele dia, confusÇo e gritos, choros e crianÚas e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
     No deserto, porÊm,  havia apenas o vento eterno, o silËncio, e o  casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
     "JÂ cruzei muitas vezes estas areias" - disse um cameleiro certa noite.
"Mas o  deserto  Ê tÇo  grande,  os horizontes ficam tÇo longe, que  fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silËncio".
     O rapaz entendeu o que o  cameleiro queria dizer, mesmo  sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o  mar ou o fogo, era  capaz de
ficar horas em silËncio, sem pensar em nada, mergulhado  na imensidÇo  e  na
forÚa dos elementos.
     "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambÊm
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sÂbio".
     O vento nÇo parava nunca. O  rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse roÚando
de leve pela lÇ  de suas  ovelhas, que seguiam em busca  de alimento e  Âgua
pelos campos de Andaluzia.
     "NÇo  sÇo  mais  minhas  ovelhas",  disse para  si  mesmo,  sem  sentir
saudades. "Devem ter  se acostumado  a um novo  pastor,  e j me esqueceram.
Isto  Ê bom.  Quem est  acostumado  a viajar, como as  ovelhas,  sabe que Ê
sempre necessÂrio partir um dia".
     Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve  certeza de  que ela
j  havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com  um pastor  que tambÊm
soubesse ler e contasse histÕrias extraordinÂrias; afinal, ele nÇo devia ser
o ßnico. Mas  ficou  impressionado  com  o  seu  pressentimento: talvez  ele
estivesse aprendendo tambÊm esta histÕria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente  de todos os  homens. "Pressentimentos",  como sua  mÇe
costumava dizer. O rapaz  comeÚou  a entender que os pressentimentos eram os
rÂpidos mergulhos que a alma  dava nesta corrente  Universal de vida, onde a
histÕria de todos  os  homens  est  ligada entre si, e podemos saber  tudo,
porque tudo est escrito.
     "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.

     O deserto era Ás vezes feito de  areia, e Ás vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam  diante
de um rochedo,  davam  uma  longa volta.  Se a areia era fina  demais para o
casco dos camelos, procuravam um  lugar  onde a areia fosse mais resistente.
ás  vezes o chÇo estava coberto  de  sal, no lugar onde um  lago devia haver
existido.  Os  animais  entÇo  se  queixavam,  e  os  cameleiros  desciam  e
desatolavam  os  animais.  Depois  colocavam  as cargas nas prÕprias costas,
passavam pelo chÇo traiÚoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lanÚavam a sorte  e escolhiam um novo
guia.
     Mas  tudo  isto acontecia  por uma ßnica  razÇo:  nÇo importava quantas
voltas  tivesse  que  dar,  a caravana seguia sempre em direÚÇo  a um  mesmo
ponto. Depois de vencidos os obstÂculos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posiÚÇo


     do oÂsis. Quando as  pessoas  viam aquele astro  brilhando no cÊu  pela
manhÇ, sabiam  que ele  indicava um  lugar  com mulheres,  Âgua,  t×maras  e
palmeiras.  SÕ o InglËs  nÇo percebia aquilo:  estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
     O rapaz tambÊm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas  achava muito mais interessante olhar a caravana e  escutar o
vento.  Assim  que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se  afeiÚoar  a
ele, jogou  o livro fora. Era um peso  desnecessÂrio,  apesar do rapaz haver
criado  a  superstiÚÇo  de que toda vez que abria o livro, encontrava alguÊm
importante.
     Terminou fazendo  amizade  com o  cameleiro  que  viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
     Numa destas conversas o cameleiro comeÚou a falar de sua vida.
     - Eu morava num lugar perto de El Cairum - contou. - Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que nÇo ia mudar atÊ o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita  foi melhor, seguimos  todos  para Meca,  e eu cumpri a ßnica
obrigaÚÇo que estava faltando na minha vida. Podia morrer  em paz, e gostava
disto.
     "Certo dia a terra comeÚou a tremer, e o Nilo subiu alÊm do seu limite.
Aquilo que eu pensava  que sÕ acontecia com os outros,  terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundaÚÇo;
minha mulher  teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas Âguas. E
eu tive pavor de ver destruÎdo tudo que havia conquistado.
     "Mas nÇo houve jeito.  A terra ficou  imprestÂvel  e tive que  arranjar
outro meio de vida.
     Hoje  sou  cameleiro. Mas aÎ entendi  a palavra de Allah: ninguÊm sente
medo do desconhecido, porque  qualquer pessoa Ê capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
     "SÕ  sentimos medo de perder aquilo que temos,  sejam  nossas  vidas ou
nossas plantaÚÈes. Mas este  medo passa quando entendemos que nossa histÕria
e a histÕria do mundo foram escritas pela mesma MÇo".


     ás vezes as caravanas se encontravam durante a noite.  Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando - como se realmente tudo fosse escrito
por uma  sÕ MÇo. Os cameleiros trocavam informaÚÈes  sobre as tempestades de
vento, e  se  reuniam em  torno das  fogueiras,  contando  as  histÕrias  do
deserto.
     Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuÚados; eram beduÎnos que
espionavam a  rota seguida pelas caravanas.  Davam notÎcias de assaltantes e
tribos  bÂrbaras. Chegavam  no silËncio e partiam no silËncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.

     Numa  destas noites o cameleiro veio atÊ  a fogueira onde  o rapaz  e o
InglËs estavam sentados.
     - HÂ rumores de guerra entre os clÇs - disse o cameleiro.
     Os trËs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo  que
ninguÊm tivesse  dito nenhuma  palavra.  Mais  uma vez  estava percebendo  a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
     Depois de certo tempo, o InglËs perguntou se havia perigo.


     - Quem entra no deserto nÇo pode voltar  -  disse o cameleiro. - Quando
nÇo  se  pode  voltar, sÕ devemos ficar  preocupado  com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto Ê por conta de Allah, inclusive o perigo.
     E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
     - VocË  precisa prestar  mais atenÚÇo Ás caravanas -  disse  o rapaz ao
InglËs, depois  que o cameleiro saiu. -  Elas dÇo  muitas  voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
     - E vocË devia ler mais sobre o mundo - respondeu o InglËs. - Os livros
sÇo iguais Ás caravanas.

     O imenso grupo de homens e animais comeÚou a andar mais rÂpido. AlÊm do
silËncio durante o dia, as noites - quando as pessoas costumavam  se  reunir
para  conversar  em  torno   das  fogueiras  -  comeÚaram  a  ficar   tambÊm
silenciosas. Certo dia o LÎder  da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para nÇo chamar a atenÚÇo sobre a caravana.
     Os viajantes passaram  a  fazer uma  roda  de animais, e dormiam  todos
juntos  no centro, tentando  se  proteger do frio noturno. O LÎder  passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
     Numa daquelas  noites o InglËs nÇo conseguiu dormir.  Chamou o rapaz  e
comeÚaram  a  passear pelas dunas em  volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao InglËs toda a sua histÕria.
     O  InglËs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois  que o
rapaz comeÚou a trabalhar nela.
     - Este Ê o princÎpio que move todas  as coisas - disse. - Na Alquimia Ê
chamado  de Alma  do Mundo. Quando vocË deseja algo de  todo  o seu coraÚÇo,
vocË est mais prÕximo da Alma do Mundo. Ela Ê sempre uma forÚa positiva.
     Disse tambÊm que isto nÇo era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tambÊm uma alma, nÇo importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
     - Tudo  que  est sob e  sobre a  face da Terra  se transforma  sempre,
porque  a Terra  est  viva;  e  tem  uma  alma. Somos  parte desta  Alma, e
raramente sabemos que ela  sempre trabalha em  nosso  favor.  Mas  vocË deve
entender que, na loja  dos cristais, atÊ mesmo  os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
     O  rapaz ficou em silËncio  por algum tempo, olhando a lua  e  a  areia
branca.
     - Tenho  visto a caravana  caminhando  atravÊs  do deserto - disse, por
fim. - Ela e o deserto falam a mesma lÎngua, e por  isso ele permite que ela
o  atravesse.  Vai testar  cada passo  seu,  para  ver se est  em  perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegar atÊ o oÂsis.
     "Se um de  nÕs  chegasse aqui com muita coragem, mas  sem entender esta
lÎngua, ia morrer no primeiro dia."
     Continuaram olhando a lua, juntos.
     - Esta Ê a magia dos sinais - continuou o rapaz. - Tenho  visto como os
guias  lËem os sinais  do deserto, e como a alma da  caravana conversa com a
alma do deserto.
     Depois de algum tempo, foi a vez do InglËs falar.
     - Preciso prestar mais atenÚÇo Á caravana - disse, por fim.
     - E eu preciso ler seus livros - falou o rapaz.






     Eram livros estranhos. Falavam em  mercßrio, sal,  dragÈes e reis,  mas
ele nÇo  conseguia entender  nada. Entretanto, havia uma  idÊia  que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestaÚÈes de uma
coisa sÕ.
     Num  dos livros  ele descobriu que o texto mais importante  da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
     - ê a TÂboa da Esmeralda - falou o InglËs, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
     - E entÇo, para que tantos livros?
     -  Para entender estas linhas - respondeu  o  InglËs, sem  estar  muito
convencido da prÕpria resposta.

     O livro que mais interessou ao rapaz contava a histÕria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboratÕrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos  anos,  terminaria  se libertando  de  todas as  suas  propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa ÿnica
permitia que  os  alquimistas  entendessem qualquer  coisa  sobre a  face da
Terra, porque ela era  a linguagem pela qual as  coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de  Grande Obra -  que era  composta  de  uma parte
lÎquida e uma parte sÕlida.
     - NÇo basta  observar os homens e  os  sinais, para  se  descobrir esta
linguagem? - perguntou o rapaz.
     - VocË tem mania de simplificar tudo - respondeu o InglËs irritado. - A
Alquimia Ê um trabalho sÊrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
     O  rapaz descobriu que  a  parte lÎquida da Grande Obra era chamada  de
Elixir da Longa  Vida,  e curava todas as  doenÚas, alÊm  de  evitar  que  o
alquimista ficasse velho. E a parte sÕlida era camada de Pedra Filosofal.
     -  NÇo Ê fÂcil  descobrir a  Pedra  Filosofal  -  disse o InglËs. -  Os
alquimistas ficavam  muitos anos nos  laboratÕrios,  olhando aquele fogo que
purificava os metais.  Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabeÚas iam
perdendo todas as  vaidades do  mundo. EntÇo, um belo dia, descobriam que  a
purificaÚÇo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
     O rapaz se lembrou do  Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom  limpar seus vasos,  para que ambos  se libertassem tambÊm dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de  que a Alquimia poderia  ser
aprendida na vida diÂria.
     - AlÊm disso -  falou o InglËs - a  Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante.  Uma   pequena  lasca  dela  Ê  capaz   de  transformar  grandes
quantidades de metal em ouro.
     A  partir  desta  frase, o  rapaz  ficou interessadÎssimo  em Alquimia.
Pensava que, com um  pouco  de paciËncia, poderia transformar  tudo em ouro.
Leu  a  vida de vÂrias  pessoas que  tinham  conseguido:  Helvetius,  Elias,
Fulcanelli, Geber.  Eram histÕrias fascinantes: todos estavam  vivendo atÊ o
fim sua  Lenda  Pessoal.  Viajavam, encontravam  sÂbios,  faziam milagres na
frente dos incrÊdulos, possuÎam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.


     Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente  perdido. Eram apenas desenhos,  instruÚÈes  em cÕdigo, textos
obscuros.


     -  Por que eles falam tÇo difÎcil? - perguntou  certa noite ao  InglËs.
Notou tambÊm que o InglËs  andava  meio aborrecido e sentindo  falta de seus
livros.
     -  Para que sÕ os que tËm  responsabilidade de entender  que entendam -
disse ele.  - Imagine  se  todo mundo saÎsse  transformando chumbo em  ouro.
Daqui a pouco o ouro nÇo ia valer nada.
     "SÕ os persistentes, sÕ aqueles  que pesquisam muito, Ê que conseguem a
Grande  Obra. Por  isso  estou  no  meio  deste deserto.  Para  encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cÕdigos".
     - Quando foram escritos estes livros? - perguntou o rapaz.
     - HÂ muitos sÊculos atrÂs.
     - Naquela Êpoca nÇo havia imprensa - insistiu o  rapaz. NÇo havia jeito
de todo mundo tomar  conhecimento  da Alquimia.  Por  que esta linguagem tÇo
estranha, cheia de desenhos?
     O InglËs  nÇo respondeu nada. Disse que h vÂrios dias estava prestando
atenÚÇo  Á caravana,  e que nÇo conseguia descobrir nada de  novo.  A  ßnica
coisa que tinha notado era que os comentÂrios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.


     Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao InglËs.
     -  EntÇo,  aprendeu   muita  coisa?  -  perguntou  o  outro,  cheio  de
expectativa.  Estava precisando  de alguÊm  com quem pudesse  conversar para
esquecer o medo da guerra.
     -  Aprendi  que  o  mundo tem uma  Alma,  e  quem entender  esta  Alma,
entender a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
     "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sÇo tÇo simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
     O InglËs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os sÎmbolos mÂgicos, as
palavras   difÎceis,  os   aparelhos  de  laboratÕrio,   nada  disso   havia
impressionado  o  rapaz.  "Ele  deve  ter  uma  alma primitiva  demais  para
compreender isto", apensou.
     Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
     - Volte para sua caravana - disse. - Ela tampouco  me  ensinou qualquer
coisa.
     O rapaz voltou  a contemplar o silËncio do deserto e a areia  levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira  dele nÇo  Ê a minha, e  minha maneira  nÇo  Ê a  dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".




     A caravana  comeÚou  a viajar  dia  e  noite . A toda hora apareciam os
mensageiros  encapuÚados,  e o cameleiro - que  haviam se  tornado  amigo do
rapaz  - explicou que a guerra entre os  clÇs  havia  comeÚado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao oÂsis.
     Os animais estavam  exaustos, e os homens cada vez  mais silenciosos. O
silËncio  era mais terrÎvel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo - que antes nÇo passava de um relincho de  camelo - agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invasÇo.
     O cameleiro, porÊm, parecia nÇo  se impressionar muito com  a ameaÚa de
guerra.
     - Estou vivo - disse ao  rapaz, enquanto comia  um prato de  t×maras na
noite sem fogueiras  e sem lua. - Enquanto estou comendo, nÇo faÚo nada alÊm
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, serÂ
um dia tÇo bom para morrer como qualquer outro.
     "Porque nÇo vivo  nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele  Ê  o  que me interessa.  Se vocË puder permanecer sempre no
presente,  entÇo  ser um  homem feliz.  Vai  perceber que no deserto existe
vida, que  o cÊu tem estrelas,  e  que  os guerreiros lutam porque  isto faz
parte da raÚa humana. A  vida ser uma festa, um grande festival, porque ela
Ê sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
     Duas noites depois, quando  se preparava para  dormir, o rapaz olhou em
direÚÇo ao astro  que seguiam durante a noite. Achou que o  horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
     - ê o oÂsis - disse o cameleiro.
     - E porque nÇo chegamos l imediatamente?
     - Porque precisamos dormir.


     O rapaz abriu os olhos  quando o  sol  comeÚava  a surgir no horizonte.
Diante  dele,  onde  as pequenas estrelas  haviam  estado  durante  a noite,
estendia-se uma  fila interminÂvel de tamareiras, cobrindo toda a frente  do
deserto.
     - Conseguimos! - disse o InglËs, que tambÊm tinha acabado de acordar.
     O rapaz, porÊm, mantinha-se calado.  Aprendera o silËncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar atÊ as  Pir×mides,  e algum dia aquela manhÇ seria  apenas
uma lembranÚa. Mas agora  ela  era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro,  e ele  estava procurando vivË-lo  com as  liÚÈes do seu
passado  e os  sonhos  do seu futuro. Um dia, aquela  visÇo  de milhares  de
tamareiras  seria  apenas  uma  lembranÚa.  Mas  para  ele,  neste  momento,
significava sombra, Âgua, e um refßgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo  podia se  transformar em perigo,  uma  fila de  tamareiras  podia
significar um milagre.
     "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.




     "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambÊm", pensou o
Alquimista, enquanto  via chegar centenas de pessoas e  animais ao OÂsis. As
pessoas  gritavam  atrÂs  dos  recÊm-chegados, a  poeira  encobria o sol  do
deserto,  e  as  crianÚas  pulavam de  excitaÚÇo  ao  ver  os  estranhos.  O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do LÎder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
     Mas nada daquilo interessava ao  Alquimista. JÂ havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o OÂsis  e o  deserto  permaneciam o  mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa  do  vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crianÚa.
Mesmo  assim, nÇo conseguia  conter  no fundo  do  seu  coraÚÇo  um pouco da
alegria  de  vida que  todo viajante experimentava  quando,  depois de terra
amarela  e cÊu  azul, o verde das tamareiras aparecia diante de  seus olhos.
"Talvez Deus  tenha criado o deserto para que  o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
     Depois  resolveu  concentrar-se  em assuntos mais  prÂticos.  Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia  ensinar parte de seus segredos.
Os sinais  lhe haviam contado isto. Ainda nÇo conhecia  este homem, mas seus
olhos experimentados o  reconheceriam  quando  o visse.  Esperava que  fosse
alguÊm tÇo capaz como seu aprendiz anterior.
     "NÇo sei  porque estas coisas  tem que  ser  transmitidas de  boca para
ouvido",  pensava ele.  NÇo era exatamente  porque as  coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
     Ele sÕ conhecia uma explicaÚÇo para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim  porque elas  seriam feitas de  Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
     Porque  as pessoas se fascinam com  pinturas e  palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.






     Os recÊm-chegados  foram trazidos imediatamente  Á  presenÚa dos chefes
tribais  de Al-Fayoum.  O rapaz nÇo podia acreditar no que estava vendo:  ao
invÊs  de  um  poÚo cercado de algumas palmeiras - como havia lido certa vez
num livro  de histÕria - o oÂsis era  muito maior do  que  vÂrias aldeias da
Espanha. Tinha  trezentos poÚos, cinqØenta mil  tamareiras, e muitas  tendas
coloridas espalhadas entre elas.
     - Parece  as  Mil  e  Uma  Noites  - disse  o InglËs,  impaciente  para
encontrar-se logo com o Alquimista.
     Foram cercados logo pelas crianÚas, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam  saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e  pedras que os
mercadores haviam trazido. O silËncio do  deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem saÎdo de  um
mundo espiritual, para estarem de novo entre  os homens. Estavam contentes e
felizes.
     Apesar  das  precauÚÈes do dia anterior, o cameleiro explicou ao  rapaz
que os oÂsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros,  porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crianÚas. E haviam oÂsis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os oÂsis como cidades de refßgio.
     O LÎder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e comeÚou a
dar as instruÚÈes. Iam permanecer ali atÊ que a guerra entre os clÇs tivesse
terminada.   Como  eram  visitantes,   deviam  compartilhar  as  tendas  com
habitantes  do  oÂsis,  que  lhes  dariam   seus  melhores  lugares.  Era  a
hospitalidade  da  Lei.  Depois  pediu que todos,  inclusive  seus  prÕprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
     - SÇo  as  regras da  Guerra  -  explicou o  LÎder  da Caravana.  Desta
maneira, os oÂsis nÇo poderiam abrigar exÊrcitos ou guerreiros.
     Para  surpresa  do  rapaz,  o InglËs tirou  de  seu  casaco um revÕlver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
     - Para que um revÕlver? - perguntou.
     -  Para  aprender  a confiar  nos homens - respondeu o  InglËs.  Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
     O rapaz, porÊm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as  coisas se tornavam difÎceis.  NÇo funcionava mais aquilo
que  o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistËncia  e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele nÇo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
     "Deus colocou no meu caminho", pensou  o rapaz, surpreso consigo mesmo.
AtÊ aquele momento considerava os sinais como uma coisa  do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo  como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha  pensado  que  esta  era uma  linguagem que Deus  estava  usando  para
mostrar-lhe o que devia fazer.
     "NÇo fique impaciente", repetiu o rapaz para  si  mesmo. "Como disse  o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".



     No primeiro dia todos dormiram de cansaÚo, inclusive o InglËs. O  rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de  idade quase
igual a sua. Eram gente do  deserto, e  queriam saber histÕrias  das grandes
cidades.
     O  rapaz falou  de  sua  vida  como pastor, e ia comeÚar  a contar  sua
experiËncia na loja de cristais, quando o InglËs entrou na tenda.
     - Procurei-o a manhÇ  inteira -  disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. - Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
     Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente  das outras pessoas  do oÂsis, e em sua tenda era muito
provÂvel que um forno estivesse sempre  aceso. Andaram bastante, atÊ ficarem
convencidos que o oÂsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
     -  Perdemos  quase  o dia inteiro -  disse o  InglËs, sentando-se com o
rapaz perto de um dos poÚos do oÂsis.
     - Talvez seja melhor perguntarmos - disse o rapaz.
     O InglËs  nÇo queria  contar aos outros sua presenÚa no OÂsis,  e ficou
bastante  indeciso. Mas  acabou  concordando e  pediu ao  rapaz, que  falava
melhor o Ârabe,  para  fazer isto. O rapaz  se  aproximou  de uma mulher que
havia chegado no poÚo para encher de Âgua um saco de pele de carneiro.
     - Boa  tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um  Alquimista neste
oÂsis - perguntou o rapaz.
     A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, porÊm, avisou ao rapaz que nÇo deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque  eram  mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
TradiÚÇo.
     O  InglËs ficou decepcionadÎssimo. Tinha  feito  toda a  sua viagem por
nada. O rapaz tambÊm ficou triste; seu companheiro tambÊm estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando alguÊm faz isto, o Universo todo se esforÚa para
que a  pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele nÇo podia estar
enganado.
     - Eu  nunca tinha ouvido falar antes  de alquimistas - disse o rapaz. -
SenÇo tentaria ajudÂ-lo.
     Alguma coisa brilhou nos olhos do InglËs.
     - ê  isto! Talvez ninguÊm aqui saiba o que  Ê um  alquimista!  Pergunte
pelo homem que cura todas as doenÚas da aldeia!
     VÂrias mulheres vestidas de preto vieram buscar Âgua no poÚo, e o rapaz
nÇo conversou com elas, por mais que o InglËs  insistisse. AtÊ que um  homem
se aproximou.
     - Conhece alguÊm que cura as doenÚas da aldeia? - perguntou o rapaz.
     - Allah cura todas as doenÚas, - disse o homem, visivelmente  apavorado
com os estrangeiros. - VocËs estÇo em busca de bruxos.
     E depois de dizer alguns versÎculos do AlcorÇo, seguiu seu caminho.
     Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
     - Por que vocËs querem conhecer este tipo de homem? - respondeu o Ârabe
com outra pergunta.
     - Porque  meu amigo  viajou  muitos  meses para  encontrÂ-lo - disse  o
rapaz.
     - Se este homem existe no  oÂsis, deve  ser  muito  poderoso -  disse o
velho, depois  de  pensar por  alguns  instantes. - Nem  os  chefes  tribais
conseguiriam vË-lo quando precisam. SÕ quando ele assim determinasse.


     "Esperem o final da guerra. E entÇo partam com a caravana. NÇo procurem
entrar na vida do oÂsis", concluiu, se afastando.
     Mas o InglËs ficou exultante. Estavam na pista certa.
     Finalmente surgiu uma moÚa que  nÇo estava vestida de negro.  Trazia um
c×ntaro  no  ombro,  e a cabeÚa  coberta  com  um  vÊu,  mas  tinha  o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.

     EntÇo foi como se o tempo parasse, e a  Alma do Mundo surgisse com toda
a forÚa  diante  do rapaz.  Quando ele olhou seus  olhos negros, seus lÂbios
indecisos  entre  um  sorriso  e  o  silËncio,  ele  entendeu a  parte  mais
importante e mais sÂbia da Linguagem que  o  mundo  falava,  e que todas  as
pessoas  da terra eram  capazes de  entender  em  seus  coraÚÈes. E isto era
chamado de  Amor, uma  coisa  mais antiga que  os  homens  e  que  o prÕprio
deserto,  e que no entanto ressurgia  sempre com a mesma forÚa onde quer que
dois pares de  olhos  se  cruzassem como se  cruzaram aqueles  dois pares de
olhos diante de um  poÚo. Os lÂbios finalmente resolveram dar  um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou  sem saber durante  tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado  nas ovelhas e nos  livros, nos cristais e no
silËncio do deserto.
     Ali  estava a pura  linguagem  do  mundo,  sem  explicaÚÈes,  porque  o
Universo  nÇo precisava de  explicaÚÈes para continuar seu caminho no espaÚo
sem  fim.  Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua  vida, e  sem  nenhuma necessidade  de  palavras, ela devia
saber disto tambÊm.  Tinha mais certeza  disto do que  de  qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer  a pessoa e ter dinheiro antes  de se casar.  Quem
dizia isto talvez  jamais tivesse conhecido a  linguagem  universal,  porque
quando  se  mergulha nela, Ê fÂcil entender  que sempre existe  no mundo uma
pessoa que espera  a  outra,  seja no  meio de um  deserto, seja no meio das
grandes cidades.  E  quando  estas  pessoas  se  cruzam,  e  seus  olhos  se
encontram, todo  o passado e todo o futuro perde qualquer  import×ncia, e sÕ
existe  aquele momento,  e aquela certeza  incrÎvel de que  todas  as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma MÇo.  A MÇo que  desperta o Amor, e
que  fez  uma alma gËmea  para  cada pessoa  que trabalha, descansa  e busca
tesouros debaixo  do sol. Porque  sem isto nÇo haveria qualquer sentido para
os sonhos da raÚa humana.
     "Maktub", pensou o rapaz.

     O InglËs levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
     - Vamos, pergunte a ela!
     O rapaz se aproximou da moÚa. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tambÊm.
     - Como vocË se chama? - perguntou.
     - Me chamo FÂtima - disse a moÚa, olhando para o chÇo.
     - ê um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
     -  ê  o  nome da  filha do Profeta -  disse FÂtima. - Os guerreiros  os
levaram para lÂ.
     A moÚa delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao  seu lado o InglËs
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doenÚas.
     - ê um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto - ela falou.
     Os  djins eram os demÆnios. E a moÚa apontou para  o  sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.


     Depois encheu seu c×ntaro e partiu. O InglËs partiu tambÊm, em busca do
Alquimista. E o  rapaz  ficou por  muito tempo  sentado  ao  lado  do  poÚo,
entendendo  que  algum  dia  o Levante havia deixado em seu rosto o  perfume
daquela mulher, e que j a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.






     No dia seguinte o rapaz voltou para  o poÚo,  para esperar a moÚa. Para
sua surpresa, encontrou l o InglËs, olhando pela primeira vez o deserto.
     - Esperei a tarde e a noite - disse o InglËs. - Ele chegou junto com as
primeiras estrelas.  Eu lhe contei o  que  estava  procurando. EntÇo  ele me
perguntou se j havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
     "Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: v tentar".
     O rapaz ficou quieto. O  InglËs havia viajado tanto para ouvir o que jÂ
sabia. AÎ ele  se  lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao  velho rei pela
mesma razÇo.
     - EntÇo tente - disse para o InglËs.
     - ê isto que vou fazer. E vou comeÚar agora.
     Pouco depois que o InglËs saiu, FÂtima chegou para apanhar Âgua com seu
c×ntaro.
     - Vim dizer-lhe uma coisa simples  - falou o rapaz. - Eu quero que vocË
seja minha mulher. Eu te amo.
     A moÚa deixou que seu c×ntaro derramasse a Âgua.
     -  Vou  esperÂ-la todos os  dias aqui. Cruzei o deserto  em busca de um
tesouro que se encontra perto  das pir×mides.  A  guerra foi  para  mim  uma
maldiÚÇo. Agora ela Ê uma bËnÚÇo, porque me deixa perto de vocË.
     - A guerra um dia vai acabar - disse a moÚa.
     O rapaz olhou as tamareiras do oÂsis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. FÂtima era mais importante que o tesouro.
     - Os guerreiros buscam seus  tesouros - disse a moÚa, como se estivesse
adivinhando o  pensamento  do rapaz. -  E as mulheres do deserto tËm orgulho
dos seus guerreiros.
     Depois tornou a encher seu c×ntaro, e foi embora.

     Todos  os dias o rapaz ia para o poÚo esperar FÂtima. Contou-lhe de sua
vida de pastor,  do rei, da loja de  cristais. Ficaram amigos, e com exceÚÇo
quinze minutos que passava  com ela, o resto  do dia custava infinitamente a
passar. Quando  j estava  h  quase um  mËs no oÂsis, o  LÎder  da Caravana
convocou a todos para uma reuniÇo.
     - NÇo sabemos quando a guerra vai acabar, e nÇo podemos seguir viagem -
disse.
     - Os combates devem durar por  muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os  exÊrcitos. NÇo  Ê  uma guerra  entre bons e maus. ê uma  guerra
entre forÚas  que  lutam pelo  mesmo  poder, e quando este  tipo  de batalha
comeÚa, demora mais que as outras - porque Allah est dos dois lados.
     As pessoas se  dispersaram.  O rapaz tornou a  encontrar-se  com FÂtima
aquela tarde, e contou da reuniÇo.
     - No segundo dia que nos encontramos - disse FÂtima - vocË me falou  do
seu  amor. Depois me  ensinou  coisas belas, como  a  Linguagem e a Alma  do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vocË.
     O rapaz ouvia  sua  voz, e achava  mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.


     - Faz  muito tempo, que estive aqui neste poÚo esperando por vocË.  NÇo
consigo me lembrar  do meu  passado, da  TradiÚÇo, da maneira  que os homens
esperam  que se comportem as mulheres do deserto. Desde crianÚa  eu  sonhava
que o  deserto  ia me trazer o maior presente  de minha vida. Este  presente
chegou afinal, e Ê vocË.
     O rapaz  pensou  em  tocar sua mÇo. Mas  FÂtima  segurava as  alÚas  do
c×ntaro.
     - VocË me falou dos  seus sonhos,  do velho rei, e do  tesouro. VocË me
falou dos sinais. EntÇo nÇo tenho  medo de nada,  porque foram estes  sinais
que me trouxeram vocË.  E eu  sou parte do seu sonho, da sua Lenda  Pessoal,
como vocË costuma chamar.
     "Por isso quero que siga em  direÚÇo  ao que  veio buscar. Se tiver que
esperar o final da  guerra, muito  bem. Mas se tiver que seguir antes, v em
direÚÇo Á sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto  permanece no
mesmo. Assim ser com nosso amor.
     "Maktub" - disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vocË voltar um dia".

     O rapaz saiu  triste do  encontro com FÂtima. Ele se  lembrava de muita
gente que havia  conhecido.  Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas  de  que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
     No dia seguinte ele contou tudo isto Á FÂtima.
     -  O deserto leva nossos homens e nem  sempre os traz de volta -  disse
ela. -  EntÇo nos acostumamos com  isto. E eles passam a existir nas  nuvens
sem chuva,  nos animais que se escondem entre  as pedras, na  Âgua  que  sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
     "Alguns  retornam. E  entÇo  todas as  outras mulheres  ficam  felizes,
porque  os  homens que elas  esperam  tambÊm podem voltar  um dia.  Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter  tambÊm  uma
pessoa para esperar.
     "Sou  uma  mulher do deserto e me  orgulho disto.  Quero que  meu homem
tambÊm caminhe livre como o  vento que move as dunas. Quero tambÊm poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na Âgua."

     O rapaz foi procurar o  InglËs. Queria  contar-lhe  sobre FÂtima. Ficou
surpreso quando  viu que o  InglËs havia construÎdo um pequeno forno ao lado
de  sua tenda. Era  um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
InglËs alimentava o fogo com lenha, e olhava  o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
     - Esta Ê a  primeira fase do  trabalho -  disse o  InglËs.  - Tenho que
separar  o  enxofre impuro. Para isto, nao posso ter  medo  de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra atÊ hoje.  ê agora
que estou comeÚando o que podia ter comeÚado h dez anos atrÂs. Mas me sinto
feliz de nÇo ter esperado vinte anos para isto.
     E continuou a alimentar o  fogo e  a olhar o deserto. O  rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, atÊ que o deserto comeÚou a ficar rosado com a luz
do entardecer. EntÇo ele sentiu uma imensa vontade de ir atÊ lÂ, para ver se
o silËncio conseguia responder suas perguntas.
     Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras  do  oÂsis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pÊs.
ás vezes  encontrava  alguma concha,  e sabia que aquele deserto,  num tempo
remoto,  havia sido um grande mar. Depois  sentou-se  numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia


     na sua frente. NÇo conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas FÂtima era uma mulher do deserto, e se  alguÊm  podia lhe ensinar  isto,
era o deserto.
     Ficou assim, sem pensar em nada, atÊ que pressentiu  um movimento sobre
sua  cabeÚa. Olhando para  o  cÊu,  viu que eram dois gaviÈes,  voando muito
alto.
     O  rapaz  comeÚou a olhar os gaviÈes, e os desenhos que eles  faziam no
cÊu. Parecia uma coisa desordenada, entretanto,  tinham algum sentido para o
rapaz.  Apenas nÇo conseguia compreender seu significado. Decidiu  entÇo que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pÂssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
     ComeÚou  a sentir sono.  Seu  coraÚÇo pediu para que  nÇo  dormisse: ao
invÊs disto, devia  se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo  nesta  terra faz  sentido, atÊ  mesmo  o  vÆo  de  gaviÈes", disse.  E
aproveitou para  agradecer  pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
     De repente, um gaviÇo deu um rÂpido mergulho no  cÊu e atacou o  outro.
Quando  fez este  movimento, o  rapaz  teve  uma  sßbita e rÂpida  visÇo: um
exÊrcito, de espadas desembainhadas, entrando no oÂsis. A visÇo logo  sumiu,
mas aquilo lhe deixou  sobressaltado. Havia ouvido falar das  miragens, e jÂ
havia  visto algumas: eram desejos que  se  materializavam  sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele nÇo desejava um exÊrcito invadindo o oÂsis.
     Pensou  em esquecer aquilo e  voltar  Á sua meditaÚÇo. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cÆr-de-rosa e nas  pedras. Mas  alguma coisa em seu
coraÚÇo nÇo o deixava quieto.
     "Siga  sempre  os sinais", dissera o velho  rei.  E  o rapaz pensou  em
FÂtima. Lembrou-se do que havia  visto,  e pressentiu que  estava prÕximo de
acontecer.
     Com  muita  dificuldade,  saiu  do  transe   em   que  havia   entrado.
Levantou-se,  e comeÚou  a caminhar  em direÚÇo  Ás tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o oÂsis se transformara em perigo.

     O cameleiro  estava sentado aos pÊs de  uma tamareira, tambÊm olhando o
pÆr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrÂs de uma das dunas.
     - Um exÊrcito se aproxima - disse. - Tive uma visÇo.
     - O  deserto enche  de  visÈes  o coraÚÇo  de um  homem -  respondeu  o
cameleiro.
     Mas o rapaz lhe contou dos gaviÈes: estava olhando seu vÆo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
     O  cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que  qualquer coisa  na face da  terra  pode  contar a  histÕria de todas as
coisas. Se abrisse  um  livro em qualquer  pÂgina,  ou olhasse  as mÇos  das
pessoas, ou cartas de baralho, ou vÆo dos pÂssaros, ou  seja l o que fosse,
qualquer pessoa  iria encontrar  um laÚo  com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, nÇo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
     O  deserto  estava  cheio de homens que ganhavam a  vida porque  podiam
penetrar  com facilidade na Alma do  Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos  por  mulheres  e velhos.  Os Guerreiros  raramente  os consultavam,
porque era impossÎvel entrar numa batalha  sabendo quando  se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor  da  luta e a emoÚÇo do  desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele


     tivesse escrito, era sempre para o  bem do  homem. EntÇo os  Guerreiros
viviam  apenas o  presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham  que  prestar  atenÚÇo em  muitas coisas:  onde  estava  a  espada do
inimigo,  onde estava seu  cavalo,  qual o  prÕximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
     O cameleiro nÇo era Guerreiro, e  j havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
     AtÊ que um  deles, o  mais velho  (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tÇo interessado em saber o futuro.
     -  Para que possa fazer as coisas - respondeu o  cameleiro. - E mudar o
que nÇo gostaria que acontecesse.
     - EntÇo deixar de ser seu futuro - respondeu o adivinho.
     - Talvez entÇo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virÇo.
     - Se forem coisas  boas,  isto ser uma  agradÂvel  surpresa - disse  o
adivinho. - Se forem coisas ruins, vocË  estar  sofrendo muito  antes delas
acontecerem.
     - Quero saber o futuro  porque sou  um homem - disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em funÚÇo do seu futuro.
     O adivinho  ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no  jogo
de varetas, que eram atiradas no chÇo e interpretadas da maneira  que caÎam.
Naquele  dia ele nÇo jogou as varetas.  Envolveu-as  num  lenÚo  e  tornou a
colocar no bolso.
     - Ganho a vida  adivinhando o futuro das pessoas - disse ele. - ConheÚo
a ciËncia das varetas, e sei como utilizÂ-la para penetrar neste espaÚo onde
tudo  est  escrito.  Ali posso  ler  o passado,  descobrir  o  que  j  foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
     "Quando as  pessoas me consultam, eu  nÇo estou  lendo o  futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sÕ o revela  em
circunst×ncias  extraordinÂrias.  E como  consigo adivinhar o  futuro? Pelos
sinais  do presente.  No  presente Ê  que  est  o segredo; se vocË  prestar
atenÚÇo no presente, poder melhorÂ-lo. E se vocË melhorar o presente, o que
acontecer depois tambÊm ser melhor.  EsqueÚa o futuro e  viva cada  dia de
sua vida nos  ensinamentos da Lei, e na confianÚa de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
     O cameleiro quis saber quais as circunst×ncias em que Deus permitia ver
o futuro:
     - Quando  Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro  raramente, e  por
uma ßnica razÇo: Ê um futuro que foi escrito para ser mudado.

     Deus  tinha  mostrado um futuro  ao rapaz,  pensou  o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
     -  VÂ  falar com os chefes  tribais  - disse  o  cameleiro. - Conte dos
guerreiros que se aproximam.
     - Eles vÇo rir de mim.
     - SÇo homens do deserto,  e os homens do deserto estÇo  acostumados com
os sinais.
     - EntÇo j devem saber.
     - NÇo estÇo preocupados  com  isto. Acreditam que se tiverem que  saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dir isto. J aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa Ê vocË.
     O rapaz pensou em FÂtima. E resolveu ir ver os chefes tribais.




     - Trago sinais  do deserto - disse  ao  guarda que ficava  na  porta da
imensa tenda branca no centro do oÂsis. - Quero ver os chefes.
     O guarda nÇo disse nada. Entrou e  demorou-se muito  l  dentro. Depois
saiu com um Ârabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
     A noite caiu. Entraram e saÎram vÂrios Ârabes  e mercadores. Aos poucos
as fogueiras  foram se apagando, e  o  oÂsis comeÚou a  ficar tÇo silencioso
como o deserto. SÕ a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo,  o  rapaz pensava em FÂtima,  ainda  sem entender a  conversa daquela
tarde.
     Finalmente,  depois de muitas horas  de espera, o  guarda mandou  que o
rapaz entrasse.
     O que viu deixou-o  extasiado. Nunca  poderia imaginar  que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela.  O chÇo estava coberto com os mais
belos  tapetes que j  havia  pisado,  e do teto  pendiam lustres  de  metal
amarelo  trabalhado,  coberto  de  velas acessas.  Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicÎrculo, descansando seus braÚos e pernas
em  almofadas de  seda com  ricos  bordados.  Criados  entravam e  saÎam com
bandejas de prata  cheias  de especiarias e chÂ.  Alguns  se encarregavam de
manter acesas as  brasas dos  narguilÊs. Um suave  perfume  de fumo enchia o
ambiente.
     Haviam  oito  chefes,  mas o  rapaz  logo  percebeu  quem  era  o  mais
importante:  um  Ârabe  vestido  de  branco  e ouro,  sentado no  centro  do
semicÎrculo.  Ao  seu  lado estava  o jovem  Ârabe com quem tinha conversado
antes.
     - Quem Ê o estrangeiro que fala de sinais?  - perguntou  um dos chefes,
olhando para ele.
     - Eu sou - respondeu. E contou o que havia visto.
     - E  por que o deserto ia contar  isto a um estranho, quando  sabe  que
estamos h vÂrias geraÚÈes aqui? - disse outro chefe tribal.
     - Porque meus olhos ainda nÇo se acostumaram com o  deserto - respondeu
o rapaz. -  E  eu posso  ver  coisas  que  os  olhos habituados  demais  nÇo
conseguem mais ver.
     "ê porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas nÇo falou
nada, porque os Ârabes nÇo acreditam nestas coisas.
     -  O  OÂsis  Ê um  terreno neutro. NinguÊm  ataca um  OÂsis  - disse um
terceiro chefe.
     - Eu conto apenas o que vi. Se nÇo quiserem acreditar, nÇo faÚam nada.
     Um completo  silËncio  abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto Ârabe que o rapaz  nÇo
entendia,  mas  quando ele  fez  menÚÇo  de  ir embora, um guarda disse para
ficar.  O  rapaz comeÚou a sentir  medo; os sinais diziam que  havia  alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
     De  repente,  o  velho  que estava  no  centro  deu  um  sorriso  quase
imperceptÎvel, e o rapaz  tranqØilizou-se.  O velho nÇo havia participado da
discussÇo, e nÇo  dissera uma  palavra  atÊ aquele momento.  Mas o rapaz  jÂ
estava acostumado com a  Linguagem do Mundo,  e pode sentir uma vibraÚÇo  de
Paz cruzando a tenda de ponta  a ponta. Sua  intuiÚÇo dizia que havia  agido
corretamente em vir.


     A  discussÇo  acabou. Ficaram em  silËncio  por algum tempo,  ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio  e
distante.
     -  HÂ dois mil anos,  numa terra distante, jogaram num  poÚo e venderam
como  escravo um homem que  acreditava em sonhos - disse o  velho.  - Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram  para o Egito. E todos nÕs sabemos que,
quem acredita em sonhos, tambÊm sabe interpretÂ-los.
     "Embora nem sempre consiga realizÂ-los", pensou  o  rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
     -  Por causa dos sonhos do faraÕ com vacas magras e  gordas, este homem
livrou o Egito da fome.  Seu nome era JosÊ.  Era tambÊm um  estrangeiro numa
terra estrangeira, como vocË, e devia ter mais ou menos a sua idade.
     O silËncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
     - Sempre seguimos a TradiÚÇo. A TradiÚÇo salvou o Egito da fome naquela
Êpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A TradiÚÇo ensina  como os homens
devem atravessar o deserto e  casar suas filhas. A TradiÚÇo diz que um OÂsis
Ê um terreno neutro, porque ambos os lados tem OÂsis, e sÇo vulnerÂveis.
     NinguÊm disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
     - Mas a TradiÚÇo diz tambÊm para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
     O velho fez um  sinal e todos os Ârabes se levantaram. A reuniÇo estava
para terminar. Os narguilÊs foram  apagados, e  os guardas  se  colocaram em
posiÚÇo de sentido. O rapaz preparou-se para sair,  mas o  velho falou ainda
mais uma vez:
     - AmanhÇ  nÕs vamos romper um acordo que diz que ninguÊm no  oÂsis pode
portar  armas. Durante o dia inteiro  aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer  no  horizonte,  os  homens  me devolverÇo as armas.  Para  cada  dez
inimigos mortos, vocË receber uma moeda de ouro.
     "Entretanto, as armas nÇo podem sair  do seu lugar sem experimentarem a
batalha. SÇo caprichosas  como o deserto,  e se as acostumamos com  isto, da
prÕxima vez podem  ter preguiÚa de disparar.  Se nenhuma  delas  tiver  sido
utilizada amanhÇ, pelo menos uma ser usada em vocË."




     O oÂsis estava  iluminado  apenas pela  lua  cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada atÊ sua tenda, e ele comeÚou a andar.
     Estava  assustado  com  tudo que havia  acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do  Mundo, e o preÚo  por  acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia  em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua  Lenda  Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhÇ era
tÇo bom  como  morrer em  qualquer outro  dia.  Todo dia  era feito para ser
vivido  ou  para  abandonar  o  mundo. Tudo dependia apenas de  uma palavra:
"Maktub".
     Caminhou em silËncio. NÇo estava arrependido. Se morresse amanhÇ, seria
porque Deus  nÇo  estava com  vontade de mudar o  futuro.  Mas teria morrido
depois  de  haver cruzado  o  estreito, trabalhado em uma  loja de cristais,
conhecido  o  silËncio  do  deserto  e  os olhos  de  FÂtima.  Tinha  vivido
intensamente cada um dos seus dias,  desde que havia saÎdo de casa, h tanto
tempo atrÂs. Se morresse amanhÇ, seus  olhos teriam visto  muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
     De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que nÇo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu  a lua. Na sua frente, um enorme  cavalo branco empinou  soltando  um
relincho aterrador.
     O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu  um pavor que jamais havia sentido  antes.  Em  cima do cavalo
estava  um  cavaleiro todo  vestido  de  negro,  com um falcÇo em seu  ombro
esquerdo. Usava um turbante e um lenÚo que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos  de fora. Parecia  o mensageiro do deserto, mas sua presenÚa
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
     O  estranho  cavaleiro puxou a enorme espada curva  que trazia presa  Á
sela. O aÚo brilhou com a luz da lua.
     - Quem ousou ler o vÆo  dos gaviÈes?  - perguntou com uma voz tÇo forte
que pareceu ecoar entre as cinqØenta mil tamareiras do Al-fayoum.
     -  Eu ousei  - disse o  rapaz.  Lembrou-se imediatamente da  imagem  de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco  com  os infiÊis sob as patas.  Era
exatamente assim. SÕ que agora a situaÚÇo estava invertida.
     - Eu  ousei - repetiu  o rapaz, e abaixou a cabeÚa para receber o golpe
da espada. - Muitas vidas serÇo salvas, porque vocËs nÇo contavam com a Alma
do Mundo.
     A espada, porÊm,  nÇo  desceu rÂpido.  A mÇo do  estranho foi abaixando
lentamente, atÊ  que a ponta  da l×mina  tocou na testa  do  rapaz. Era  tÇo
afiada que saiu uma gota de sangue.
     O cavaleiro estava  completamente imÕvel. O rapaz tambÊm. NÇo pensou um
minuto  sequer em fugir. Dentro  do seu coraÚÇo,  uma estranha alegria tomou
conta dele: ia  morrer por  sua Lenda Pessoal. E  por FÂtima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim.  Ali  estava  o  Inimigo,  e por  causa  disto  ele  nÇo
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui  a
pouco ele estaria  fazendo parte dela. E amanhÇ  o Inimigo faria  parte dela
tambÊm.
     O estranho, porÊm, apenas mantinha a espada em sua testa.
     - Por que vocË leu o vÆo dos pÂssaros?
     -  Li apenas  o que os  pÂssaros queriam contar. Eles  querem  salvar o
oÂsis, e vocËs morrerÇo. O oÂsis tem mais homens que vocËs.
     A espada continuava em sua testa.


     - Quem Ê vocË para mudar o destino de Allah?
     - Allah fez os exÊrcitos, e fez tambÊm os  pÂssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pÂssaros. Tudo foi escrito  pela mesma  MÇo,  - disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
     O estranho  finalmente retirou a  espada  da  testa. O rapaz  sentiu um
certo alÎvio. Mas nÇo podia fugir.
     - Cuidado com  as adivinhaÚÈes - disse  o estranho. -  Quando as coisas
estÇo escritas, nÇo h como evitÂ-las.
     -  Apenas vi  um exÊrcito - disse o rapaz. - NÇo  vi o resultado de uma
batalha.
     O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a  espada  na
sua mÇo.
     - O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
     - Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocË nÇo entender nunca.
     O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcÇo no seu  ombro deu um
grito estranho. O rapaz comeÚou a relaxar.
     - Precisava testar sua coragem - disse o estranho. - A coragem Ê  o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
     O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
     -  ê preciso  nÇo  relaxar  nunca, mesmo  tendo  chegado  tÇo  longe  -
continuou ele.  - ê preciso amar o deserto, mas jamais confiar  inteiramente
nele. Porque o deserto Ê uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
     Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
     - Se os guerreiros chegarem, e sua cabeÚa ainda estiver sobre o pescoÚo
depois que o sol morrer, me procure - disse o estranho.
     A mesma mÇo que havia segurado a espada, empunhou  um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
     - Onde vocË mora? - gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
     A mÇo com chicote apontou em direÚÇo ao sul.
     O rapaz tinha encontrado o Alquimista.






     Na manhÇ seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que  o  sol chegasse ao topo do cÊu, quinhentos  guerreiros
apareceram no horizonte.  Os cavaleiros  entraram no oÂsis pela parte norte;
parecia uma expediÚÇo de paz,  mas haviam  armas  escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram  perto da  grande tenda  que  ficava  no centro  de
Al-Fayoum, puxaram as  cimitarras  e as  espingardas. E  atacaram uma  tenda
vazia.
     Os homens do oÂsis cercaram  os  cavaleiros do  deserto.  Em meia  hora
haviam  quatrocentos  e noventa  e  nove  corpos  espalhados  pelo chÇo.  As
crianÚas estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e nÇo viram nada.
As  mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambÊm  nÇo viram  nada.
NÇo fosse pelos corpos espalhados, o oÂsis parecia viver um dia normal.
     Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhÇo. De tarde ele
foi conduzido diante dos  chefes  tribais,  que lhe perguntaram porque havia
rompido a TradiÚÇo. O comandante  disse que seus  homens estavam  com fome e
sede,  exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um oÂsis
para poder recomeÚar a luta.
     O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a TradiÚÇo jamais
pode ser rompida. A  ßnica coisa  que  muda no  deserto sÇo as dunas, quando
sopra o vento.
     Depois condenou o comandante a uma  morte sem honra. Ao invÊs do aÚo ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado  numa  tamareira tambÊm morta. Seu corpo
balanÚou com o vento do deserto.
     O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqØenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histÕria de JosÊ no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do OÂsis.






     Quando  o sol se pÆs por completo, e as primeiras estrelas comeÚaram  a
aparecer (nÇo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em  direÚÇo  ao  sul. Havia apenas  uma tenda,  e alguns Ârabes que passavam
diziam que  o  lugar  era  cheio de djins.  Mas o rapaz sentou-se e  esperou
durante muito tempo.
     O Alquimista apareceu quando a lua  j estava alto no cÊu.  Trazia dois
gaviÈes mortos no ombro.
     - Aqui estou - disse o rapaz.
     - NÇo devia  estar - respondeu o Alquimista. - Ou sua Lenda Pessoal era
chegar atÊ aqui?
     - Existe uma guerra entre os clÇs. NÇo Ê possÎvel cruzar o deserto.
     O Alquimista  desceu do seu cavalo,  e fez um sinal  para que  o  rapaz
entrasse com  ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as  outras que havia
conhecido no oÂsis - exceto a grande  tenda central,  que tinha o  luxo  dos
contos de fada. - Ele  procurou os aparelhos  e fornos de alquimia, mas  nÇo
encontrou  nada. Havia apenas  uns poucos  livros empilhados,  um fogÇo para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
     - Sente-se, que vou preparar um ch  - disse o Alquimista.  E comeremos
juntos estes gaviÈes.
     O rapaz  suspeitou  que  eram os mesmos pÂssaros que havia visto no dia
anterior, mas  nÇo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um  delicioso cheiro de carne  enchia a tenda. Era melhor que o perfume  dos
narguilÊs.
     - Por que quis me ver? - disse o rapaz.
     - Por causa dos sinais - respondeu o Alquimista - O vento me contou que
vocË viria. E que ia precisar de ajuda.
     -  NÇo sou eu. ê o  outro estrangeiro, o  InglËs.  Ele  Ê que  o estava
buscando.
     -  Ele tem que encontrar outras coisas antes  de me encontrar. Mas estÂ
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
     - E eu?
     - Quando se quer uma coisa,  todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga  realizar seu  sonho - disse o  Alquimista, repetindo as palavras do
velho  rei.  O  rapaz entendeu.  Outro  homem estava  no seu  caminho,  para
conduzi-lo atÊ sua Lenda Pessoal.
     - EntÇo vocË vai me ensinar?
     - NÇo. VocË j sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
direÚÇo ao seu tesouro.
     - Existe uma guerra entre os clÇs. - repetiu o rapaz.
     - Eu conheÚo o deserto.
     -  JÂ encontrei meu tesouro. Tenho um camelo,  o dinheiro  das lojas de
cristais,  e  cinqØenta moedas  de ouro.  Posso  ser um homem rico  na minha
terra.
     - Mas nada disto est perto das Pir×mides - disse o Alquimista.
     - Tenho FÂtima. ê um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
     - TambÊm ela nÇo est perto das Pir×mides.
     Comeram os  gaviÈes  em  silËncio. O  Alquimista  abriu  uma  garrafa e
derramou um  lÎquido vermelho  no copo do rapaz. Era vinho, um dos  melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.


     - O  mal nÇo Ê  o que entra na boca do  homem - disse o Alquimista. - O
mal Ê o que sai dela.
     O rapaz comeÚou  a sentir-se alegre com  o vinho. Mas o  Alquimista lhe
inspirava  medo. Sentaram-se do lado de fora da  tenda, olhando o  brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
     - Beba e se distraia um pouco - disse o Alquimista, notando que o rapaz
comeÚava a ficar cada vez mais  alegre.  - Repouse como um guerreiro  sempre
repousa antes do combate. Mas nÇo esqueÚa que o seu coraÚÇo est onde est o
seu tesouro.  E que  seu tesouro precisa ser encontrado, para  que tudo isto
que vocË descobriu no caminho possa fazer sentido.
     "AmanhÇ  venda   seu  camelo  e  compre  um   cavalo.  Os  camelos  sÇo
traiÚoeiros: andam  milhares de passos, e nÇo dÇo qualquer sinal de cansaÚo.
De repente, porÊm, ajoelham e morrem. Os cavalos vÇo se cansando aos poucos.
E  vocË poder saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a Êpoca em que vÇo
morrer".


     Na  noite  seguinte  o  rapaz  apareceu  com  um  cavalo  na  tenda  do
Alquimista.  Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcÇo no ombro esquerdo.
     - Mostre-me  a  vida no  deserto  - disse o  Alquimista. - SÕ quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
     ComeÚaram a caminhar pelas areias, com a lua  ainda brilhando sobre  os
dois. "NÇo sei se vou conseguir encontrar vida  no deserto", pensou o rapaz.
"NÇo conheÚo ainda o deserto".
     Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviÈes no  cÊu; entretanto,
tudo era silËncio e vento.
     -  NÇo consigo encontrar  vida no  deserto - disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas nÇo consigo encontrÂ-la.
     - A vida atrai a vida - respondeu o Alquimista.
     E  o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rÊdeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e  areia. O Alquimista seguia  em silËncio, e o
cavalo do  rapaz  andou  por quase meia-hora.  JÂ  nÇo  podiam mais  ver  as
tamareiras do oÂsis, apenas  a lua gigantesca no cÊu, e as  rochas brilhando
com a cor  prata. De  repente, num lugar  onde  jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
     - Aqui existe vida - respondeu o rapaz ao  Alquimista. - NÇo conheÚo  a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
     Desmontaram.  O Alquimista nÇo disse nada.  ComeÚou a olhar  as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou,  e abaixou-se com  todo  cuidado.
Havia um buraco no chÇo, entre as pedras;  o Alquimista enfiou a mÇo  dentro
do buraco,  e depois enfiou o  braÚo atÊ o ombro.  Alguma coisa se  mexeu lÂ
dentro, e os olhos do Alquimista - ele sÕ podia ver os olhos - se encolherem
de esforÚo e tensÇo.  O  braÚo  parecia  lutar com  o que estava  dentro  do
buraco. Mas num salto que  assustou o rapaz, o Alquimista retirou o braÚo  e
ficou imediatamente de pÊ. Sua mÇo trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
     O rapaz tambÊm  deu um salto, sÕ que  para trÂs. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo  ruÎdos e silvos que feriam o silËncio do  deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.


     "Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mÇo no buraco, e  j devia  ter  sido mordido.  Seu rosto, porÊm,
estava tranqØilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o InglËs.
     JÂ devia saber como lidar com cobras no deserto.
     O  rapaz viu quando seu companheiro  foi  atÊ o cavalo e puxou  a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, traÚou um cÎrculo no chÇo  e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
     - Pode ficar tranqØilo - disse o Alquimista. - Ela nÇo vai sair dali. E
vocË descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
     - Por que isto era tÇo importante?
     - Porque as Pir×mides estÇo cercadas de deserto.
     O rapaz nÇo queria ouvir falar nas Pir×mides. Seu coraÚÇo estava pesado
e  triste, desde a  noite anterior. Porque seguir em busca  do  seu tesouro,
significava ter que abandonar FÂtima.
     - Vou guiÂ-lo pelo deserto - falou o Alquimista.
     - Quero ficar no  oÂsis - respondeu  o rapaz. -  JÂ encontrei FÂtima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
     - FÂtima Ê uma mulher do  deserto - disse  o Alquimista. - Sabe  que os
homens devem  partir,  para poderem  voltar. Ela  j  encontrou seu tesouro:
vocË. Agora espera que vocË encontre o que busca.
     - E se eu resolver ficar?
     - Ser o Conselheiro do OÂsis. Tem  ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e  muitos camelos. Vai  casar-se com  FÂtima  e  viverÇo  felizes  o
primeiro  ano.  Aprender  a  amar  o  deserto e vai  conhecer cada uma  das
cinqØenta mil tamareiras. Perceber  como  elas  crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E ir  cada vez entender mais os sinais, porque o deserto Ê
um mestre melhor que todos os mestres.
     "No segundo  ano  vocË  se lembrar que existe um  tesouro.  Os  sinais
comeÚarÇo  a falar insistentemente  sobre  isto,  e vocË tentar ignorÂ-los.
Usar  seu  conhecimento  apenas  para  o  bem-estar  do  oÂsis  e dos  seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecerÇo por isto.  Os seus camelos lhe
trarÇo riqueza e poder.
     "No terceiro ano os sinais continuarÇo a falar sobre seu  tesouro e sua
Lenda Pessoal. VocË vai ficar noites  e noites andando pelo oÂsis, e  FÂtima
ser uma mulher triste, porque fez  com  que seu caminho fosse interrompido.
Mas vocË lhe dar amor, e ser correspondido.  VocË  vai se lembrar  que ela
jamais  pediu que ficasse,  porque uma mulher do  deserto  sabe  esperar seu
homem. Por isso nÇo vai culpÂ-la. Mas  vai andar muitas  noites pelas areias
do  deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse  ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por FÂtima. Porque o que o manteve no
oÂsis  foi seu prÕprio medo  de nÇo voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicarÇo que seu tesouro est enterrado para sempre.
     No quarto ano, os  sinais o abandonarÇo, porque vocË nÇo quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irÇo entender isto,  e vocË ser destituÎdo do Conselho. A
esta  altura   ser  um  rico  comerciante,  com  muitos  camelos  e  muitas
mercadorias. Mas passar o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o  deserto, sabendo que nÇo cumpriu sua  Lenda  Pessoal, e que agora Ê tarde
demais para isto.
     "Sem jamais compreender que o Amor nunca impede  um homem de seguir sua
Lenda  Pessoal. Quando isto  acontece, Ê  porque nÇo era o verdadeiro  Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".


     O Alquimista desfez o cÎrculo  no  chÇo, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz  lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
Á Meca, e o InglËs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto  um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
     Montaram  em  seus  cavalos, e  desta vez  foi  o  rapaz  que seguiu  o
Alquimista. O vento trazia os ruÎdos do oÂsis,  e  ele tentava identificar a
voz de FÂtima. Naquele dia nÇo tinha ido ao poÚo por causa da batalha.
     Mas esta  noite,  enquanto olhavam uma  cobra dentro de um  cÎrculo,  o
estranho  cavaleiro  com  seu  falcÇo no ombro havia  falado  de  amor  e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
     -  Vou  com  vocË  - disse o rapaz.  E  imediatamente sentiu paz no seu
coraÚÇo.
     -  Partimos  amanhÇ antes que  o sol nasÚa - foi  a ßnica  resposta  do
Alquimista.




     O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou  um  dos  rapazes que  dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava FÂtima. SaÎram juntos, e foram atÊ lÂ. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
     Depois pediu  que descobrisse onde FÂtima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem Ârabe  fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
     - Agora deixe-nos  a  sÕs - disse o rapaz ao jovem  Ârabe, que voltou Á
sua tenda para dormir, orgulhoso  de haver ajudado o Conselheiro do OÂsis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
     FÂtima  apareceu na  porta da tenda. Os dois saÎram para andar entre as
tamareiras.  O rapaz sabia  que era contra a  TradiÚÇo,  mas  isto nÇo tinha
nenhuma import×ncia agora.
     - Vou  partir  - disse. E quero  que saiba  que  vou voltar.  Eu te amo
porque...
     - NÇo  diga nada - interrompeu FÂtima. - Ama-se porque  se  ama. NÇo hÂ
qualquer razÇo para amar.
     Mas o rapaz continuou:
     - Eu  te amo porque tive  um  sonho,  encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei  o deserto,  os clÇs declararam guerra,  e estive num poÚo para saber
onde morava um Alquimista. Eu te  amo  porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse atÊ vocË.
     - Os  dois  se  abraÚaram. Era a primeira  vez que um  corpo tocava  no
outro.
     - Voltarei - repetiu o rapaz.
     - Antes  eu olhava o deserto com desejo -  disse FÂtima. Agora ser com
esperanÚa.  Meu pai  um  dia partiu,  mas  voltou para minha mÇe, e continua
voltando sempre.
     E  nÇo disseram mais nada.  Andaram um pouco entre  as  tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
     - Voltarei como seu pai voltou para a sua mÇe - disse.
     Reparou que os olhos de FÂtima estavam cheios d'Âgua.
     - VocË chora?


     -  Sou uma mulher  do  deserto - disse  ela, escondendo o  rosto. - Mas
acima de tudo, sou uma mulher.

     FÂtima  entrou na tenda. Daqui a pouco o  sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela  ia sair  e fazer aquilo que havia feito durante  tantos anos;
mas  tudo  havia mudado. O rapaz j nÇo  estava mais no oÂsis, e o oÂsis nÇo
teria mais o significado que  tinha atÊ pouco tempo antes. NÇo seria mais  o
lugar  com cinqØenta mil  tamareiras e trezentos  poÚos, onde os  peregrinos
chegavam contentes  depois  de  uma longa  viagem.  O oÂsis, daquele dia  em
diante, seria um lugar vazio para ela.
     A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o  rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo  vento,  na esperanÚa de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como  uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca  de sonhos e
tesouros. A partir  daquele dia,  o  deserto  ia  ser apenas  uma  coisa:  a
esperanÚa de sua volta.







     - NÇo  pense  no  que ficou para  trÂs  - disse  o  Alquimista,  quando
comeÚaram a cavalgar pelas areias do deserto. - Tudo est gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecer para sempre.
     - Os  homens  sonham mais com a volta do que  com a partida  - disse  o
rapaz, que j estava se acostumando de novo com o silËncio do deserto.
     - Se o que vocË encontrou Ê feito de matÊria pura, jamais apodrecerÂ. E
vocË poder voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a  explosÇo
de uma estrela, entÇo nÇo  vai encontrar nada  quando voltar. Mas ter visto
uma explosÇo de luz. E sÕ isto j valeu a pena.
     O  homem  falava  em linguagem de  alquimia.  Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo Á FÂtima.
     Era difÎcil nÇo pensar no  que havia ficado  para trÂs. O  deserto, com
sua paisagem  quase sempre igual,  costumava  encher-se  de sonhos. O  rapaz
ainda via as tamareiras, os poÚos,  e  o rosto da mulher amada. Via o InglËs
com seu laboratÕrio, e o cameleiro que era um mestre e nÇo sabia. "Talvez  o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
     O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcÇo nos ombros. O falcÇo
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saÎa do ombro  do
Alquimista e  voava em busca de alimento. No  primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pÂssaros.
     De noite, estendiam seus cobertores e nÇo acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias,  e foram ficando escuras Á medida que a lua comeÚou a
diminuir no cÊu. Durante uma semana andaram em silËncio,  conversando apenas
sobre as precauÚÈes  necessÂrias  para evitar os  combates entre  os clÇs. A
guerra continuava,  e o vento Ás vezes trazia o cheiro adocicado  de sangue.
Alguma batalha havia  sido travada por perto, e o vento  recordava ao  rapaz
que havia  a  Linguagem  dos Sinais,  sempre pronta para mostrar o  que seus
olhos nÇo conseguiam ver.
     Quando completaram sete dias de viagem,  o  Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que  de costume. O falcÇo saiu  em busca de caÚa, e ele tirou o
cantil de Âgua e ofereceu ao rapaz.
     - VocË agora est quase no final da viagem - disse o Alquimista. - Meus
parabÊns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
     - E vocË est me guiando em silËncio - disse o rapaz. - Pensei  que  ia
me ensinar  aquilo que sabe. Faz algum  tempo  que  estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas nÇo consegui aprender nada.
     -  SÕ  existe  uma maneira de aprender  -  respondeu o Alquimista  -  ê
atravÊs da aÚÇo.  Tudo que vocË precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
     O rapaz quis  saber o que era, mas o Alquimista  manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcÇo.
     - Por que o chamam de Alquimista?
     - Porque sou.


     - E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram  ouro
e nÇo conseguiram?
     -  Buscavam  apenas  ouro  -  respondeu seu companheiro.  - Buscavam  o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prÕpria Lenda.
     - O que me falta saber? - insistiu o rapaz.
     Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcÇo retornou  com a  comida. Cavaram  um  buraco e  acenderam a  fogueira
dentro dele, para que ninguÊm pudesse ver a luz das chamas.
     -  Sou um Alquimista porque  sou  um Alquimista -  disse ele,  enquanto
preparavam a  comida. - Aprendi a ciËncia de  meus avÕs, que  aprenderam  de
seus avÕs, e assim atÊ a criaÚÇo do  mundo. Naquela Êpoca, toda a ciËncia da
Grande  Obra  podia ser  escrita numa simples esmeralda.  Mas os  homens nÇo
deram import×ncia  Ás coisas  simples,  e  comeÚaram  a  escrever  tratados,
interpretaÚÈes, e estudos filosÕficos.  ComeÚaram tambÊm a dizer  que sabiam
melhor o caminho que os outros.
     "Mas a TÂboa da Esmeralda continua viva atÊ hoje".
     - O que estava escrito na TÂboa da Esmeralda? - quis saber o rapaz.
     O  Alquimista comeÚou a desenhar  na areia, e  nÇo demorou mais  do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
praÚa onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
     -  Isto  estava  escrito na TÂboa  da  Esmeralda - disse o  Alquimista,
quando acabou de escrever.
     O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
     -  ê um  cÕdigo  -  disse o rapaz, um pouco decepcionado com a TÂboa da
Esmeralda. - Parece com os livros do InglËs.
     - NÇo - respondeu  o Alquimista. - ê como  o vÆo dos  gaviÈes; nÇo deve
ser compreendida  simplesmente  pela  razÇo.  A TÂboa  da  Esmeralda  Ê  uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
     "Os sÂbios entenderam que este mundo natural Ê apenas uma imagem e  uma
cÕpia do ParaÎso.  A simples existËncia  deste  mundo Ê  a garantia  de  que
existe um mundo mais perfeito  que ele. Deus o criou  para  que, atravÊs das
coisas   visÎveis,   os   homens  pudessem   compreender  seus  ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto Ê que eu chamo de AÚÇo".
     - Devo entender a TÂboa da Esmeralda? - perguntou o rapaz.
     - "Talvez, se vocË estivesse num laboratÕrio de Alquimia, agora seria o
momento  certo  para  estudar  a  melhor  maneira  de  entender  a TÂboa  da
Esmeralda. Entretanto, vocË est no  Deserto. EntÇo mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender  o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da  terra. VocË  nem  precisa  de entender o  deserto: basta  contemplar  um
simples grÇo de areia, e ver nele todas as maravilhas da CriaÚÇo".
     - Como faÚo para mergulhar no deserto?
     - Escute seu coraÚÇo.  Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornar para ela.


     Andaram  em silËncio mais dois  dias. O  Alquimista  estava muito  mais
cauteloso,  porque se aproximavam da zona  de combates  mais violentos. E  o
rapaz procurava escutar seu coraÚÇo.


     Era  um  coraÚÇo difÎcil; antes  estava  acostumado a  partir sempre, e
agora queria chegar a  todo custo. ás vezes, seu coraÚÇo ficava muitas horas
contando histÕrias de saudades, outras vezes se  emocionava com  o nascer do
sol  no  deserto, e fazia  o  rapaz chorar escondido. O  coraÚÇo  batia mais
rÂpido quando falava para  o rapaz sobre o tesouro  e  ficava mais  vagaroso
quando os  olhos  do  rapaz se perdiam no horizonte sem fim do  deserto. Mas
nunca estava em silËncio, mesmo que  o  rapaz nÇo trocasse uma palavra com o
Alquimista.
     -  Por  que  temos  que escutar  o coraÚÇo? -  perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
     - Porque, onde ele estiver, Ê onde estar o seu tesouro.
     -  Meu coraÚÇo Ê agitado - disse o  rapaz. - Tem sonhos, se emociona, e
est apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e nÇo me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
     - ê bom. Seu  coraÚÇo  est vivo.  Continue a  ouvir o que ele tem para
dizer.
     Nos trËs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no  horizonte.  O coraÚÇo do rapaz comeÚou a falar sobre o
medo.  Contava para  o rapaz histÕrias que  tinha ouvido da  Alma  do Mundo,
histÕrias  de  homens  que  foram em  busca  de  seus  tesouros  e jamais  o
encontraram. ás vezes assustava o rapaz com o pensamento de que  poderia nÇo
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz  que j  estava satisfeito,  que j  havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
     - Meu coraÚÇo Ê traiÚoeiro -  disse o rapaz ao Alquimista,  quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. - NÇo quer que eu continue.
     - Isto Ê bom -  respondeu o Alquimista.  - Prova que  seu  coraÚÇo estÂ
vivo.  ê  natural  ter  medo  de trocar por um  sonho  tudo aquilo que j se
conseguiu.
     - EntÇo, para que devo escutar meu coraÚÇo?
     -  Porque vocË nÇo vai  conseguir jamais  mantË-lo calado. E mesmo  que
finja nÇo escutar o que ele diz, ele estar  dentro do  seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
     - Mesmo que ele seja traiÚoeiro?
     -  A traiÚÇo Ê  o golpe que  vocË nÇo espera.  Se vocË conhecer bem seu
coraÚÇo, ele  jamais conseguir isto. Porque  vocË conhecer  seus  sonhos e
seus desejos, e saber lidar com eles.
     "NinguÊm consegue fugir do seu coraÚÇo. Por isso Ê melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocË nÇo espera".

     O  rapaz  continuou  a  escutar  seu coraÚÇo, enquanto caminhavam  pelo
deserto.  Passou  a  conhecer suas  artimanhas  e  seus truques,  e passou a
aceitÂ-lo como  era.  EntÇo o rapaz  deixou de ter medo,  e  deixou  de  ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu  coraÚÇo  lhe disse  que  estava
contente. "Mesmo  que eu reclame um pouco", dizia seu coraÚÇo, "Ê porque sou
um coraÚÇo de homem, e os coraÚÈes de homens sÇo assim. TËm medo de realizar
seus  maiores  sonhos,   porque  acham  que  nÇo  o  merecem,  ou   nÇo  vÇo
consegui-los. NÕs, os coraÚÈes,  morremos de medo sÕ de pensar em amores que
partiram para  sempre, em  momentos que  poderiam  ter sido  bons e que  nÇo
foram, em tesouros que  poderiam ter sido descobertos e ficaram  para sempre
escondidos  na  areia. Porque  quando  isto  acontece,  terminamos  sofrendo
muito".


     - Meu coraÚÇo tem medo de sofrer - disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o cÊu sem lua.
     -  Diga  para  ele  que  o  medo de sofrer  Ê  pior  do  que  o prÕprio
sofrimento. E que nenhum coraÚÇo  jamais sofreu quando foi em busca  de seus
sonhos, porque cada momento de busca Ê um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
     "Cada momento de busca Ê um momento de encontro", disse o rapaz  ao seu
coraÚÇo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu  sabia que cada hora fazia parte  do sonho  de encontrar. Enquanto
procurei  este meu  tesouro, descobri  no  caminho  coisas  que jamais teria
sonhado  encontrar,   se  nÇo  tivesse  tido  a  coragem  de  tentar  coisas
impossÎveis aos pastores".
     EntÇo seu coraÚÇo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqØilo, e  quando acordou,  o seu  coraÚÇo comeÚou a lhe contar as
coisas  da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus  dentro de  si. E que a felicidade  poderia  ser encontrada num simples
grÇo de areia do deserto, como  o Alquimista havia falado. Porque um grÇo de
areia  Ê  um momento da CriaÚÇo, e o Universo demorou milhares de milhÈes de
anos para  criÂ-lo. "Cada  homem na  face da Terra tem  um tesouro que  estÂ
esperando por  ele",  disse seu coraÚÇo.  NÕs, os coraÚÈes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os  homens j nÇo querem mais encontrÂ-los. SÕ
falamos dele  para as crianÚas. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em  direÚÇo ao seu  destino.  Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes  est traÚado,  e  que Ê o caminho da Lenda Pessoal, e  da  felicidade.
Acham o  mundo uma coisa ameaÚadora - e por causa disto o mundo se torna uma
coisa ameaÚadora.
     "EntÇo nÕs, os coraÚÈes, vamos falando cada vez mais baixo, mas nÇo nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras  nÇo  sejam  ouvidas: nÇo
queremos que os homens sofram porque nÇo seguiram seus coraÚÈes".
     -  Por que  os coraÚÈes nÇo  contam  aos  homens  que  devem  continuar
seguindo seus sonhos? - perguntou o rapaz ao Alquimista.
     -  Porque, neste caso, o coraÚÇo  Ê o que sofre mais. E os coraÚÈes nÇo
gostam de sofrer.
     O rapaz entendeu seu coraÚÇo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu  que, quando estivesse  longe de  seus  sonhos,  o coraÚÇo
apertasse no peito e desse o sinal  de alarme. O rapaz jurou que sempre  que
escutasse este sinal, tambÊm o seguiria.
     Naquela noite  conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o coraÚÇo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
     - O que faÚo agora? - perguntou o rapaz.
     - Siga em direÚÇo  Ás  Pir×mides - disse  o Alquimista.  -  E  continue
atento aos sinais. Seu coraÚÇo jÂ Ê capaz de lhe mostrar o tesouro.
     - Era isto que estava faltando saber?
     -  NÇo. -  respondeu o Alquimista.  -  O que  est  faltando saber Ê  o
seguinte:
     "Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela  faz isto nÇo  porque seja
mÂ, mas  para que  possamos, junto com  o  nosso sonho, conquistar tambÊm as
liÚÈes  que aprendemos seguindo em direÚÇo a ele. ê o momento em que a maior
parte das pessoas desiste.  ê o  que chamamos,  em linguagem  do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras j apareceram no horizonte' ".


     "Uma busca comeÚa sempre  com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
     O rapaz lembrou-se de um velho provÊrbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.




     No  dia seguinte apareceu o  primeiro sinal concreto  de  perigo.  TrËs
guerreiros  se  aproximaram e perguntaram o que os dois estavam  fazendo por
ali.
     - Vim caÚar com o meu falcÇo - respondeu o Alquimista.
     -  Precisamos revistÂ-los  para ver se nÇo  levam armas - disse  um dos
guerreiros.
     O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
     - Para quË tanto dinheiro? - perguntou o guerreiro, quando viu  a bolsa
do rapaz.
     - Para chegar ao Egito - disse ele.
     O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de lÎquido,  e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
     - Que sÇo estas coisas? - perguntou o guarda.
     - ê  a Pedra Filosofal e  o Elixir  da Longa  Vida. ê a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir  jamais ficar doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
     Os guardas riram pra valer,  e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a  resposta muito engraÚada,  e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
     -  VocË est louco? - perguntou o rapaz ao Alquimista, quando j haviam
se distanciado bastante. - Para que vocË fez isto?
     -  Para  mostrar  a vocË  uma  simples  lei  do  mundo  -  respondeu  o
Alquimista.  -  Quando temos  os  grandes  tesouros  diante  de  nÕs,  nunca
percebemos. E sabe por quË? Porque os homens nÇo acreditam em tesouros.
     Continuaram andando  pelo deserto. A cada dia que passava, o coraÚÇo do
rapaz ia ficando mais silencioso. JÂ nÇo queria saber das coisas passadas ou
das  coisas futuras; contentava-se em contemplar  tambÊm o deserto, e  beber
junto com o rapaz da  Alma do  Mundo. Ele e seu coraÚÇo  tornaram-se grandes
amigos - um passou a ser incapaz de trair o outro.
     Quando o coraÚÇo falava, era para dar estÎmulo e forÚa ao rapaz, que Ás
vezes achava terrivelmente maÚante os dias de silËncio. O coraÚÇo contou-lhe
pela  primeira  vez  suas grandes qualidades:  sua coragem  ao abandonar  as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
     Contou-lhe tambÊm mais uma coisa,  que o rapaz nunca  havia notado:  os
perigos  que  passaram perto e que  ele nunca  tinha percebido.  Seu coraÚÇo
disse que certa vez havia escondido  a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz  havia passado mal em  pleno  campo,  vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam  dois assaltantes mais adiante,  que  estavam planejando
roubar  suas  ovelhas,  e  assassinÂ-lo.  Mas  como  o  rapaz  nÇo aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
     -  Os  coraÚÈes  sempre  ajudam  os  homens?  - perguntou  o  rapaz  ao
Alquimista.
     - SÕ os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas  ajudam muito  as crianÚas, os
bËbados, e os velhos.
     - Quer dizer entÇo que nÇo h perigo?


     - Quer dizer apenas que os coraÚÈes se esforÚam ao mÂximo - respondeu o
Alquimista.
     Certa tarde passaram  pelo acampamento de um dos clÇs. Haviam Ârabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas  em todos os cantos. Os homens
fumavam narguilÊ  e  conversavam sobre  os combates. NinguÊm  prestou  maior
atenÚÇo aos dois viajantes.
     - NÇo h qualquer perigo  - disse o rapaz, quando j tinham se afastado
um pouco do acampamento.
     O Alquimista ficou furioso.
     - Confie em seu coraÚÇo - disse, mas nÇo se esqueÚa de que vocË est no
deserto. Quando os homens estÇo em guerra, a Alma do Mundo  tambÊm sente  os
gritos de combate.  NinguÊm deixa de sofrer as  conseqØËncias de  cada coisa
que se passa debaixo do sol.
     "Tudo Ê uma coisa ßnica", pensou o rapaz.
     E  como  se  o deserto quisesse mostrar que  o velho Alquimista  estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detrÂs dos viajantes.
     - NÇo podem seguir adiante - disse um deles. -  VocËs estÇo nas  areias
onde os combates sÇo travados.
     - NÇo vou muito longe - respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos   guerreiros.  Eles  ficaram  quietos  por  alguns  minutos,  e   depois
concordaram com a viagem dos dois.
     O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
     - VocË dominou os guardas com o olhar - comentou ele.
     - Os olhos mostram a forÚa da alma - respondeu o Alquimista.
     Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que,  no  meio da multidÇo
de soldados no  acampamento,  um deles  estava olhando fixo para os dois.  E
estava tÇo  distante,  que nÇo dava sequer para ver  direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
     Finalmente, quando comeÚaram a cruzar  uma montanha que se estendia por
todo o horizonte,  o  Alquimista  disse que faltavam dois dias para chegarem
atÊ Ás Pir×mides.
     - Se vamos nos separar logo - respondeu o rapaz - me ensine Alquimia.
     - VocË j sabe. ê penetrar na Alma do Mundo,  e descobrir o tesouro que
ela reservou para nÕs.
     - NÇo Ê isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
     O Alquimista respeitou  o silËncio do deserto,  e sÕ respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
     - Tudo no Universo  evolui - disse ele. - E para os sÂbios, o ouro Ê  o
metal mais evoluÎdo. NÇo pergunte porquË; nÇo sei. Sei apenas que a TradiÚÇo
est sempre certa.
     "Os homens  Ê que  nÇo interpretaram bem as  palavras dos sÂbios.  E ao
invÊs de sÎmbolo de evoluÚÇo, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
     -  As coisas falam  muitas linguagens  -  disse o rapaz. - Vi quando  o
relincho de camelo  era  apenas um relincho, depois passou  a  ser  sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
     Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
     -  Conheci  verdadeiros  alquimistas  -  continuou. - Se  trancavam  no
laboratÕrio e tentavam evoluir como  o ouro; descobriam a  Pedra  Filosofal.
Porque  haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tambÊm tudo que
est a sua volta.


     "Outros conseguiram  a pedra por acidente. JÂ tinham  o dom, suas almas
estavam  mais despertas  que  a das outras pessoas.  Mas  estes  nÇo contam,
porque sÇo raros.
     "Outros, enfim,  buscavam  apenas  o  ouro. Estes jamais descobriram  o
segredo.  Esqueceram-se de  que o chumbo, o  cobre,  o ferro, tambÊm tËm sua
Lenda  Pessoal  para cumprir.  Quem interfere na Lenda  Pessoal  dos outros,
nunca descobrir a sua".
     As  palavras do Alquimista soaram  como  uma maldiÚÇo. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
     - Isto um dia j foi um mar - disse.
     - JÂ tinha reparado -  respondeu o rapaz. O  Alquimista pediu ao  rapaz
para colocar  a  concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes  quando
era crianÚa, e escutou o barulho do mar.
     - O  mar  continua  dentro desta concha, porque Ê sua  Lenda Pessoal. E
jamais a abandonarÂ, atÊ que o deserto se cubra novamente de Âgua.
     Depois montaram em seus  cavalos, e seguiram em direÚÇo Ás Pir×mides do
Egito.




     O sol tinha  comeÚado a descer quando  o coraÚÇo do  rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de  gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas  este  parecia  nÇo  haver  notado  nada.  Cinco  minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros  a sua frente, as silhuetas cortadas contra  o sol.
Antes  que  pudesse  falar   com  o  Alquimista,   os  dois   cavaleiros  se
transformaram  em dez, depois em cem,  atÊ  que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
     Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro  vÊu azul,  deixando apenas os olhos de
fora.
     Mesmo distante,  os olhos mostravam a forÚa de  suas almas. E  os olhos
falavam em morte.


     Levaram os dois para um acampamento  militar nas imediaÚÈes. Um soldado
empurrou  o  rapaz  e o Alquimista para dentro de uma  tenda.  Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no oÂsis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
     - SÇo os espiÈes - disse um dos homens.
     - Somos apenas viajantes - respondeu o Alquimista.
     -  VocËs  foram vistos  no  acampamento  inimigo h trËs  dias atrÂs. E
conversaram com um dos guerreiros.
     - Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas - disse o
Alquimista. NÇo tenho informaÚÈes de tropas, ou o movimento dos clÇs. Apenas
guiava meu amigo atÊ aqui.
     - Quem Ê seu amigo? perguntou o comandante.
     - Um Alquimista - disse o Alquimista. - Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinÂria.
     O rapaz ouvia em silËncio. E com medo.
     - O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? - disse outro homem.


     - Trouxe dinheiro  para oferecer a seu  clÇ -  respondeu o  Alquimista,
antes que o rapaz  dissesse qualquer palavra.  E  pegando  a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
     O Ârabe aceitou em silËncio. Dava para comprar muitas armas.
     - O que Ê um Alquimista? - perguntou, finalmente.
     - Um homem que conhece a natureza  e o mundo. Se ele quisesse, destruÎa
este acampamento apenas com a forÚa do vento.
     Os homens riram.  Estavam acostumados com a forÚa da guerra,  e o vento
nÇo detÊm um golpe mortal. Dentro do peito de cada um,  porÊm, seus coraÚÈes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
     - Quero ver - disse o general.
     - Precisamos de  trËs  dias -  respondeu o  Alquimista.  - E ele vai se
transformar em vento,  apenas  para mostrar a  forÚa de seu  poder.  Se  nÇo
conseguir,  nÕs lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela  honra de seu
clÇ.
     - NÇo pode me oferecer o que jÂ Ê meu - disse, arrogante, o general.
     Mas concedeu os trËs dias aos viajantes.

     O rapaz  estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os braÚos.
     - NÇo  deixe  que  eles percebam seu medo - disse o Alquimista.  -  SÇo
homens corajosos, e desprezam os covardes.
     O rapaz,  porÊm,  estava sem voz.  SÕ conseguiu falar  depois de  algum
tempo,  enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. NÇo  havia necessidade
de prisÇo: os Ârabes apenas tiraram seus cavalos.  E mais  uma vez  o  mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponÎvel.
     - VocË deu todo o meu tesouro! - disse o rapaz. - Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
     - E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? - respondeu, o
Alquimista.  -  Seu dinheiro o salvou por trËs dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
     Mas o  rapaz estava apavorado  demais  para ouvir palavras sÂbias.  NÇo
sabia como transformar-se em vento. NÇo era um Alquimista.
     O Alquimista pediu ch a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz.  Uma onda  de tranqØilidade  encheu seu corpo,  enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele nÇo conseguia compreender.
     -  NÇo se  entregue  ao  desespero -  disse o  Alquimista,  com uma voz
estranhamente doce.  - Isto faz  com que vocË  nÇo consiga conversar com seu
coraÚÇo.
     - Mas eu nÇo sei transformar-me em vento.
     -  Quem vive  sua Lenda Pessoal, sabe tudo que  precisa  saber. SÕ  uma
coisa torna um sonho impossÎvel: o medo de fracassar.
     - NÇo tenho medo de fracassar. Apenas nÇo sei transformar-me em vento.
     - Pois ter que aprender. Sua vida depende disto.
     - E se eu nÇo conseguir?
     - Vai morrer  enquanto vivia sua Lenda  Pessoal. ê muito  melhor do que
morrer  como  milhÈes  de pessoas,  que jamais souberam que a  Lenda Pessoal
existia.


     "Entretanto, nÇo se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensÎveis Á vida."



     O  primeiro dia se passou. Houve uma grande  batalha  nas imediaÚÈes, e
vÂrios feridos foram  trazidos para o acampamento  militar. "Nada muda com a
morte",  pensava o rapaz. Os guerreiros  que morriam  eram  substituÎdos por
outros, e a vida continuava.
     - Poderias ter morrido  mais tarde,  meu amigo - disse  o guarda para o
corpo de um  companheiro  seu. - Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
     No  final do dia, o  rapaz foi procurar  o Alquimista. Estava levando o
falcÇo para o deserto.
     - NÇo sei transformar-me em vento - repetiu o rapaz.
     -  Lembre-se  do  que eu lhe  disse:  de que o  mundo Ê  apenas a parte
visÎvel  de  Deus. De  que  a  Alquimia Ê trazer  para  o plano  material  a
perfeiÚÇo espiritual.
     - O que vocË faz?
     - Alimento meu falcÇo.
     - Se eu nÇo conseguir transformar-me em vento, nÕs vamos morrer - disse
o rapaz. - Para que alimentar o falcÇo?
     - Quem vai morrer Ê vocË - disse o Alquimista.  - Eu sei transformar-me
em vento.




     No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas  o deixaram passar; j ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento,  e nÇo queriam chegar perto  dele. AlÊm  disso,  o
deserto era uma grande e intransponÎvel muralha.
     Ficou o resto da tarde  do  segundo dia olhando o deserto. Escutou  seu
coraÚÇo. E o deserto escutou seu medo.
     Ambos falavam a mesma lÎngua.




     No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
     - Vamos  ver o garoto  que se transforma em vento -  disse o General ao
Alquimista.
     - Vamos ver - respondeu o Alquimista.
     O rapaz os conduziu atÊ  o  lugar onde  havia estado no  dia  anterior.
EntÇo pediu que todos se sentassem.
     - Vai demorar um pouco - disse o rapaz.
     - NÇo temos pressa - respondeu o General. - Somos homens do deserto.


     O rapaz  comeÚou a olhar o horizonte  a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas  e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a  sobrevivËncia  era  impossÎvel.  Ali  estava  o deserto,  que  ele  havia
percorrido durante tantos meses,  e que, mesmo assim,  sÕ conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de clÇs, e um oÂsis com cinqØenta mil tamareiras e trezentos poÚos.
     - O que  vocË  quer aqui  hoje? - perguntou  o deserto. -  JÂ  nÇo  nos
contemplamos o suficiente ontem?
     -  Em algum ponto  vocË guarda a  pessoa que  eu amo - disse o rapaz. -
EntÇo, quando olho suas areias contemplo tambÊm a ela.  Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
     - O que Ê o amor? - perguntou o deserto.
     - O amor  Ê quando o falcÇo voa sobre suas areias. Porque para ele vocË
Ê um campo verde, e ele nunca voltou sem caÚa. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vocË Ê generoso com ele.
     - O  bico  do falcÇo tira pedaÚos de  mim - disse o deserto. -  Durante
anos eu cultivo  sua caÚa, alimento  com a pouca Âgua que tenho, mostro onde
est a comida. E um dia, desce o  falcÇo  do cÊu,  justamente quando  eu  ia
sentir o  carinho da  caÚa  sobre minhas areias. Ele carrega  aquilo que  eu
criei.
     - Mas foi para isto  que  vocË criou a caÚa - respondeu o rapaz. - Para
alimentar  o  falcÇo.  E  o  falcÇo alimentar  o  homem.  E  o homem  entÇo
alimentar  um  dia  tuas  areias, de  onde a caÚa  tornar a  surgir. Assim
move-se o mundo.
     - ê isto o amor?
     - ê isto o amor. ê o que faz a  caÚa transformar-se em falcÇo, o falcÇo
em  homem,  e  o homem  de  novo  em  deserto.  ê  isto  que  faz  o  chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
     - NÇo entendo suas palavras - disse o deserto.
     -  EntÇo  entenda  que  em algum  lugar de suas  areias, uma mulher  me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
     O deserto ficou em silËncio por alguns instantes.
     - Eu lhe dou minhas  areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
nÇo posso fazer nada. PeÚa ajuda ao vento.

     Uma pequena brisa comeÚou a soprar. Os comandantes olhavam o  rapaz  ao
longe, falando uma linguagem que eles nÇo conheciam.


     O Alquimista sorria.

     O vento  chegou perto  do rapaz e  tocou seu  rosto. Havia escutado sua
conversa com  o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
     - Me ajude - disse  o rapaz ao vento. - Certo dia escutei em vocË a voz
da minha amada.
     - Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
     - Meu coraÚÇo - respondeu o rapaz.
     O  vento tinha  muitos nomes. Ali ele  era chamado de siroco, porque os
Ârabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de Âgua, onde habitavam
homens negros.  Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o  chamavam de
Levante,  porque acreditavam que trazia as areias do  deserto e os gritos de
guerra dos mouros.  Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem  que o vento nascia  em Andaluzia. Mas o vento nÇo vinha de
lugar nenhum,  e nÇo ia para  lugar nenhum, e por isso era mais  forte que o
deserto. Um dia eles  poderiam plantar Ârvores no deserto, e atÊ mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
     - VocË nÇo  pode  ser  o  vento - disse o vento. - Somos  de  naturezas
diferentes.
     - NÇo Ê verdade - disse  o  rapaz.  -  Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto  vagava  o mundo com vocË. Tenho em mim os ventos,  os desertos, os
oceanos, as  estrelas, e tudo que foi  criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma MÇo,  e temos a mesma Alma. Quero ser como vocË, penetrar em todos  os
cantos, atravessar os mares,  tirar  a  areia que  cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
     -  Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia - disse o vento. -  Ele
falou  que cada  coisa  tem  sua  Lenda  Pessoal. As  pessoas nÇo  podem  se
transformar em vento.
     -  Me ensine a  ser vento por alguns instantes, - disse o rapaz. - Para
que  possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos  homens e dos
ventos.
     O  vento  era curioso, e aquilo  era uma  coisa  que ele  nÇo conhecia.
Gostaria  de conversar sobre aquele  assunto, mas nÇo sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele  conhecia tanta coisa!  ConstruÎa  desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mßsica e de ruÎdos estranhos. Achava que era  ilimitado, e no entanto ali
estava  um  rapaz dizendo que  ainda havia mais  coisas  que um vento  podia
fazer.
     - ê isto que chamam de Amor - disse o rapaz, ao ver  que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. - Quando se ama Ê que se consegue ser  qualquer
coisa da CriaÚÇo. Quando se ama nÇo temos necessidade  nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nÕs, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, Ê claro.
     O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado  com o que o rapaz dizia.
ComeÚou a soprar com mais  velocidade,  levantando as areias do deserto. Mas
finalmente  teve  que reconhecer  que,  mesmo  havendo  percorrido  o  mundo
inteiro, nÇo sabia como transformar homens em ventos. E nÇo conhecia o Amor.
     - Enquanto  passeava  pelo  mundo,  notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando  para o cÊu - disse o  vento, furioso por  ter que aceitar suas
limitaÚÈes. - Talvez seja melhor perguntar ao cÊu.


     - EntÇo me ajude - disse o  rapaz. - Encha  este  lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
     O  vento entÇo soprou com  muita forÚa, e o cÊu ficou  cheio de  areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.



     No acampamento estava ficando difÎcil de enxergar. Os homens do deserto
j conheciam aquele vento.  Chamava-se Simum, e era  pior que uma tempestade
no mar - porque eles nÇo conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
comeÚaram a ficar cobertas de areia.
     No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
     - Talvez  seja  melhor  pararmos  com isto.  Eles  j quase nÇo  podiam
enxergar o rapaz.  Os rostos estavam cobertos pelos lenÚos azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
     - Vamos parar com isto - insistiu outro comandante.
     - Quero ver  a grandeza de Allah - disse com respeito  o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
     Mas anotou mentalmente o nome  dos  dois homens que haviam  tido  medo.
Assim  que  o vento  parasse, ia destituÎ-los de  seus comandos,  porque  os
homens do deserto nÇo sentem medo.




     O vento me disse  que vocË conhece o Amor - disse  o rapaz ao Sol. - Se
vocË conhece o Amor, conhece tambÊm a Alma do Mundo, que Ê feita de Amor.
     - Daqui de onde estou - disse o sol - posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha  alma, e  nÕs, juntos, fazemos as  plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de  sombra. Daqui  de onde estou - e estou muito
longe do mundo - aprendi a  amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco  mais
da Terra, tudo que  est nela morrerÂ, e a Alma do Mundo deixar de existir.
EntÇo nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe  dou vida e calor,  e ela me
d uma razÇo para viver.
     - VocË conhece o Amor - disse o rapaz.
     - E conheÚo a Alma do  Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala  que seu maior problema Ê que atÊ hoje, sÕ os
minerais e os vegetais entenderam que tudo Ê uma coisa sÕ.  E para isto, nÇo
precisa que o ferro seja  igual ao cobre, e que o cobre seja igual  ao ouro.
Cada um cumpre sua funÚÇo exata nesta coisa ßnica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz  se a  MÇo que escreveu  tudo  isto tivesse  parado no  quinto dia da
criaÚÇo.
     "Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
     -  VocË Ê  sÂbio  porque vË tudo Á dist×ncia - respondeu o rapaz. - Mas
nÇo conhece o  Amor. Se nÇo houvesse um sexto dia da criaÚÇo,  nÇo haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem  sua Lenda Pessoal,  Ê  verdade, mas  um  dia  esta  Lenda  Pessoal serÂ
cumprida. EntÇo  Ê  preciso transformar-se  em algo  melhor, e  ter uma nova
Lenda Pessoal, atÊ que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa sÕ.


     O  sol  ficou pensativo  e resolveu  brilhar mais forte.  O vento,  que
estava gostando da  conversa, soprou tambÊm  mais forte, para que  o sol nÇo
cegasse o rapaz.
     -  Para isto  existe a  Alquimia - disse o rapaz. - Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois  queira ser melhor do  que foi na
sua vida anterior. O  chumbo cumprir seu papel atÊ que o mundo nÇo  precise
mais de chumbo; entÇo ele ter que transformar-se em ouro.
     "Os Alquimistas fazem isto. Mostram  que, quando buscamos ser  melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tambÊm".
     - E por que vocË diz que eu nÇo conheÚo o Amor? - perguntou o Sol.
     - Porque o amor  nÇo Ê  estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo  de longe,  como  vocË.  O  Amor  Ê a  forÚa  que
transforma e melhora  a  Alma do Mundo.  Quando penetrei nela pela  primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixÈes. Somos nÕs que alimentamos
a  Alma do  Mundo, e  a  terra onde  vivemos ser melhor ou pior,  se formos
melhores ou piores. AÎ  Ê que entra  a forÚa  do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
     - O que vocË quer de mim? - perguntou o Sol.
     - Que me ajude a transformar-me em vento - respondeu o rapaz.
     - A Natureza me conhece como a mais sÂbia de todas as criaturas - disse
o Sol. - Mas nÇo sei como transformÂ-lo em vento.
     - Com quem devo falar, entÇo?
     Por  um  momento o  sol ficou  quieto. O  vento estava  ouvindo,  e  ia
espalhar  por todo  o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto,  nÇo
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
     - Converse com a MÇo que escreveu tudo - disse o Sol.

     O vento gritou  de contentamento, e soprou com mais forÚa do que nunca.
As tendas comeÚaram a  ser arrancadas  da areia, e os animais soltaram-se de
suas rÊdeas. No rochedo, os homens se agarravam  uns  aos  outros  para  nÇo
serem atirados longe.

     O rapaz se virou entÇo para a MÇo que Tudo Havia Escrito. E ao invÊs de
falar qualquer coisa, sentiu que o  Universo ficava  em silËncio, e ficou em
silËncio tambÊm.
     Uma forÚa de Amor jorrou de seu coraÚÇo, e o rapaz comeÚou a rezar. Era
uma oraÚÇo que  nunca tinha feito antes,  porque era uma oraÚÇo sem palavras
ou  sem pedidos. NÇo estava agradecendo  pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto,  nem implorando  para vender  mais cristais, nem  pedindo  para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua  volta. No silËncio  que
se seguiu, o  rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tambÊm buscavam
os sinais que aquela MÇo havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender  o  que estava escrito  numa  simples esmeralda. Sabia que  aqueles
sinais  estavam espalhados na Terra e no EspaÚo,  e que em sua aparËncia nÇo
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os  sÕis, e nem os homens sabiam porque tinham  sido criados. Mas aquela
MÇo  tinha um motivo para tudo isto, e sÕ ela era  capaz de operar milagres,
de  transformar  oceanos  em  desertos, e  homens  em  vento.  Porque sÕ ela
entendia que um desÎgnio maior empurrava o Universo a um ponto onde  os seis
dias da criaÚÇo se transformariam na Grande Obra.


     E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do  Mundo  era a
parte da Alma  de Deus, e viu que a Alma de  Deus era a  sua prÕpria alma. E
que podia, entÇo, realizar milagres.




     O simum  soprou naquele  dia como jamais havia soprado.  Durante muitas
geraÚÈes os  Ârabes contaram entre  si  a  lenda  de um rapaz que  havia  se
transformado em vento, quase destruÎdo um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
     Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele nÇo estava mais lÂ; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
     Os homens estavam apavorados com a bruxaria. SÕ duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discÎpulo certo, e o General, porque
o discÎpulo tinha entendido a glÕria de Deus.
     No  dia seguinte, o general  despediu-se  do  rapaz e do  Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse atÊ onde os dois quisessem.




     Caminharam  o  dia  inteiro. Quando estava  entardecendo,  chegaram  em
frente a um mosteiro copta. O  Alquimista  dispensou a  escolta, e desceu de
seu cavalo.
     - Daqui para frente vocË vai sozinho - disse o Alquimista. - SÇo apenas
trËs horas atÊ as Pir×mides.
     - Obrigado - disse o rapaz. - VocË me ensinou a Linguagem do Mundo.
     - Eu apenas recordei o que vocË j sabia.
     O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o  alquimista convidou  o
rapaz para entrar.
     - Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha - disse ele.
     Foram atÊ a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe  um pouco de chumbo,  que o Alquimista derreteu dentro de  um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado  lÎquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma  camada do tamanho  de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
     A  mistura ganhou uma cor vermelha, como o  sangue. O Alquimista  entÇo
tirou  a panela do fogo e a  deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos clÇs.
     Deve durar muito - disse ele para o monge.
     O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh,  esperando que a  guerra  acabasse.  "Mas seja feita a  vontade de
Deus", disse o monge.
     - Exatamente - respondeu o Alquimista.
     Quando  a  panela  acabou  de  esfriar,  o  monge  e  o  rapaz  olharam
deslumbrados. O chumbo tinha  secado na forma circular da panela, mas j nÇo
era mais chumbo. Era ouro.
     - Aprenderei a fazer isto um dia? - perguntou o rapaz.
     - Esta foi minha Lenda Pessoal, e nÇo a sua - respondeu o Alquimista. -
Mas queria lhe mostrar que Ê possÎvel.
     Caminharam de novo atÊ a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
     -  Esta Ê  para  vocË - disse ele, estendendo uma parte para o monge. -
Por sua generosidade com os peregrinos.
     - Estou recebendo um pagamento alÊm da minha generosidade - respondeu o
monge.
     - Jamais repita isto. A vida  pode escutar, e lhe dar  menos da prÕxima
vez.
     Depois aproximou-se do rapaz.
     - Esta Ê para vocË. Para pagar o que deixou com o general.
     O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o comentÂrio do Alquimista com o monge
...
     -  Esta Ê para mim - disse o Alquimista,  guardando uma parte. - Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os clÇs.
     EntÇo pegou o quarto pedaÚo e deu de novo para o monge.
     - Esta Ê para o rapaz. Caso ele necessite.
     - Mas estou indo  em  busca do meu tesouro - disse o rapaz. Estou perto
dele agora!


     - E tenho certeza que ir encontrÂ-lo - falou o Alquimista.
     - EntÇo por que isto?
     - Porque vocË j perdeu duas vezes,  com  o  ladrÇo e com o general,  o
dinheiro que ganhou em  sua viagem. Eu sou um velho Ârabe supersticioso, que
acredito nos provÊrbios de minha terra. E existe um provÊrbio que diz:
     "Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais  acontecer.  Mas  tudo  que
acontece duas vezes, acontecer certamente uma terceira".
     Montaram em seus cavalos.


     - Quero lhe contar uma histÕria sobre sonhos - disse o Alquimista.
     O rapaz aproximou seu cavalo.
     - Na antiga Roma, na Êpoca  do imperador  TibÊrio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o exÊrcito,
foi enviado para as mais  distantes  regiÈes  do ImpÊrio.  O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
     "Certa  noite, o velho  teve um sonho. Um  anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam  conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as geraÚÈes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
     "Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crianÚa que ia
ser  esmagada  pelas  rodas de  uma  carruagem. Como tinha  se comportado de
maneira correta  e  justa por toda  a sua  vida, foi  direto  para o cÊu,  e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
     "- VocË foi um homem bom - disse-lhe o anjo. - Viveu sua existËncia com
amor,  e  morreu  com  dignidade. Posso realizar  agora qualquer  desejo que
tenha.
     "- A vida  tambÊm foi boa para mim - respondeu o  velho. -  Quando vocË
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esforÚos estavam justificados.
Porque  os  versos  de meu  filho  ficarÇo entre  os  homens  pelos  sÊculos
vindouros. Nada tenho  a pedir para mim; entretanto,  todo pai se orgulharia
de ver a fama de alguÊm que ele cuidou quando crianÚa e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
     "O  anjo  tocou no ombro do velho, e os dois  foram projetados  para um
futuro  distante. Em  volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares  de
pessoas, que falavam numa lÎngua estranha.
     "O velho chorou de alegria.
     "-  Eu sabia que os versos do meu  filho poeta  eram bons e  imortais -
disse para o  anjo, entre lÂgrimas. - Gostaria que  vocË me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas estÇo repetindo.
     "O anjo entÇo se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num  dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
     "- Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma - disse o
anjo. - Todos gostavam, e se divertiam com  eles.  Mas  quando o  reinado de
TibÊrio  acabou, seus versos tambÊm  foram esquecidos. Estas palavras sÇo de
seu filho que entrou para o exÊrcito.
     "O velho olhou surpreso para o anjo.


     "- Seu filho foi servir num lugar  distante, e tornou-se centuriÇo. Era
tambÊm um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu  filho, entÇo,  ouviu falar de um rabi que curava os
doentes,  e  andou  dias e  dias em  busca deste homem.  Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o  Filho de  Deus. Encontrou
outras pessoas que  haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centuriÇo romano converteu-se Á sua fÊ. AtÊ que certa manhÇ
chegou perto do Rabi.
     "- Contou-lhe  que tinha um servo doente. E  o Rabi se prontificou a ir
atÊ sua casa. Mas  o centuriÇo era um homem  de fÊ,  e olhando no fundo  dos
olhos do  Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
     "- Estas sÇo as palavras  de seu filho - disse o  anjo ao velho . - SÇo
as palavras que ele disse  ao Rabi naquele momento,  e que  nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu nÇo sou digno que entreis em minha casa,  mas
dizei uma sÕ palavra e meu servo ser salvo".

     O Alquimista moveu seu cavalo.
     -  NÇo  importa  o   que  faÚa,  cada  pessoa   na  Terra  est  sempre
representando o papel principal da HistÕria do mundo - disse ele.
     - E normalmente nÇo sabe disto.
     O rapaz  sorriu.  Nunca  havia  pensado  que a  vida  pudesse  ser  tÇo
importante para um pastor.
     - Adeus - disse o Alquimista.
     - Adeus - respondeu o rapaz.






     O rapaz caminhou  duas  horas e meia pelo deserto,  procurando  escutar
atentamente o que seu coraÚÇo  dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
     "Onde estiver seu tesouro, ali estar tambÊm  o seu coraÚÇo", dissera o
Alquimista.
     Mas seu coraÚÇo falava em outras coisas.
     Contava com  orgulho a  histÕria de um  pastor  que  havia deixado suas
ovelhas para seguir  um sono  que se  repetiu  duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que  fizeram isto, que foram em busca  de terras
distantes  ou de mulheres bonitas, enfrentando os  homens de  sua Êpoca  com
seus  preconceitos e conceitos. Falou durante todo  aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudanÚas.
     Quando ia comeÚar a subir uma duna - e sÕ naquele momento - foi que seu
coraÚÇo sussurrou ao seu ouvido  - "esteja atento  para  o  lugar  onde vocË
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar est seu tesouro".
     O rapaz comeÚou  a subir a duna lentamente. O cÊu, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mËs  pelo deserto. A lua
iluminava  tambÊm  a duna, num jogo de sombras, que fazia com  que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em  que  soltara  livremente um  cavalo pelo deserto, dando um bom  sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o  silËncio do deserto, e  a  jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
     Quando, depois de  alguns  minutos, chegou ao topo da duna, seu coraÚÇo
deu um  salto.  Iluminadas pela luz da  lua cheia e  pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pir×mides do Egito.
     O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em  sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglËs, e  um alquimista. Sobretudo, por haver  encontrado uma mulher  do
deserto, que lhe tinha  feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
     Os  muitos  sÊculos das  Pir×mides  do Egito contemplavam,  do alto,  o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar  ao oÂsis, pegar FÂtima,  e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia  no deserto, mesmo
compreendendo  a Linguagem do  Mundo,  mesmo  sabendo  transformar chumbo em
ouro. NÇo tinha que  mostrar  a  ninguÊm  sua ciËncia e  sua  arte. Enquanto
caminhava  em  direÚÇo  Á  sua  Lenda  Pessoal,  havia  aprendido  tudo  que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
     Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra sÕ est completa quando  o
objetivo Ê atingido.  Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
chÇo  e viu  que,  no  local onde haviam caÎdo suas lÂgrimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o sÎmbolo de Deus.
     Ali estava  mais um  sinal.  E  o  rapaz  comeÚou a  cavar,  depois  de
lembrar-se do mercador de cristais; ninguÊm conseguiria  ter uma Pir×mide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.

     Durante a noite inteira  o rapaz cavou no lugar  marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pir×mides, os sÊculos o contemplavam, em silËncio .  Mas o
rapaz nÇo desistia:


     cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a  areia de volta para o buraco. Suas mÇos ficaram  cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu coraÚÇo. E seu coraÚÇo dissera para cavar onde
suas lÂgrimas caÎssem.
     De  repente, quando  estava  tentando tirar algumas  pedras  que haviam
aparecido,  o  rapaz  ouviu passos.  Algumas  pessoas  se  aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz nÇo podia ver seus olhos, nem seus rostos.
     - O que vocË est fazendo aÎ? - perguntou um dos vultos.
     O rapaz  nÇo  respondeu. Mas sentiu medo.  Tinha agora  um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
     - Somos refugiados da guerra dos clÇs - disse outro vulto. - Precisamos
saber o que vocË esconde aÎ. Precisamos de dinheiro.
     - NÇo escondo nada - respondeu o rapaz.
     Mas  um dos  recÊm-chegados agarrou-o  e  o  puxou para fora do buraco.
Outro comeÚou a revistar seus bolsos. E encontraram o pedaÚo de ouro.
     - Ele tem ouro - disse um dos salteadores.
     A lua iluminou a face de quem o  estava revistando, e ele viu,  em seus
olhos, a morte.
     - Deve haver mais ouro escondido no chÇo - disse outro.
     E obrigaram o  rapaz a  cavar. O rapaz  continuou cavando,  e nÇo havia
nada.  EntÇo  comeÚaram  a  bater  no  rapaz.  Espancaram o  rapaz  atÊ  que
aparecessem no cÊu os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava prÕxima.
     "De  que adianta o dinheiro,  se  tiver  que  morrer?  Poucas  vezes  o
dinheiro Ê capaz de livrar alguÊm da morte", dissera o Alquimista.
     - Estou procurando um tesouro! - gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca  ferida e  inchada de  pancadas,  contou  aos  salteadores  que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pir×mides do Egito.
     O  que parecia o  chefe ficou um  longo tempo em silËncio. Depois falou
com um deles:
     - Pode deixÂ-lo. Ele nÇo tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
     O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pir×mides.
     - Vamos embora - disse o chefe para os outros.
     Depois, virou-se para o rapaz:
     -  VocË  nÇo vai morrer - disse. - Vai viver e aprender que o homem nÇo
pode  ser tÇo  estßpido. AÎ, neste  lugar  onde vocË estÂ, eu tambÊm tive um
sonho repetido  h quase dois anos atrÂs. Sonhei que devia ir atÊ os  campos
da Espanha, buscar  uma igreja em ruÎnas onde os pastores  costumavam dormir
com suas ovelhas, e  que tinha um sicÆmoro crescendo dentro da sacristia, se
eu  cavasse  na  raiz  deste  sicÆmoro,  haveria  de  encontrar  um  tesouro
escondido. Mas nÇo sou estßpido de cruzar um deserto sÕ porque tive um sonho
repetido.
     Depois foi embora.
     O rapaz  levantou-se  com  dificuldade,  e  olhou  mais uma vez para as
Pir×mides.  As Pir×mides sorriram  para  ele, e ele  sorriu de  volta, com o
coraÚÇo repleto de felicidade.
     Havia encontrado o tesouro.






     O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
j  estava quase anoitecendo.  O  sicÆmoro ainda  continuava na sacristia, e
ainda  se podiam ver  as estrelas atravÊs do teto  semidestruÎdo. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha  sido uma noite
tranqØila, exceto pelo sonho.
     Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao invÊs disto, trazia uma pÂ.
     Ficou muito tempo olhando o cÊu. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite  no deserto, quando tinha tambÊm  olhado
as estrelas e  bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e  a maneira  estranha de  Deus  lhe mostrar o tesouro. Se nÇo
tivesse acreditado em sonhos repetidos, nÇo tinha encontrado a cigana, nem o
rei,  nem o salteador,  nem... "bom, a lista Ê  muito grande.  Mas o caminho
estava escrito  pelos  sinais,  e eu nÇo  tinha como errar",  disse  para si
mesmo.
     Dormiu  sem perceber, e quando acordou, o sol j ia alto. EntÇo comeÚou
a escavar a raiz do sicÆmoro.
     "Velho bruxo", pensava o rapaz. "VocË sabia de  tudo. Deixou  atÊ mesmo
um  pouco de ouro para que eu pudesse voltar atÊ  esta  Igreja. O  monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. NÇo podia me poupar isto?"
     "NÇo", ele escutou o  vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vocË nÇo
teria visto as Pir×mides. SÇo muito bonitas, nÇo acha?"
     Era a voz do  Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a p bateu em algo sÕlido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baß cheio  de velhas  moedas de  ouro  espanholas. Havia  tambÊm  pedrarias,
mÂscaras de ouro com penas brancas e vermelhas,  Îdolos de pedra  cravejados
de brilhantes. PeÚas de uma conquista que o paÎs j havia esquecido h muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
     O rapaz tirou o  Urim  e o  Tumim do alforje. Tinha  utilizado  as duas
pedras apenas uma  vez, quando estava certa manhÇ,  num mercado. A  vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
     Guardou o  Urim  e  o Tumim no baß de  ouro. Eram tambÊm  parte  de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
     "Realmente a vida Ê generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz.  EntÇo lembrou-se de  que tinha  que ir  atÊ Tarifa, e dar  um dÊcimo
daquilo tudo  para a cigana. "Como  sÇo espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
     Mas  o vento voltou a  soprar. Era  o  Levante,  o vento  que vinha  da
âfrica. NÇo  trazia o cheiro do deserto, nem a ameaÚa de invasÇo dos mouros.
Ao invÊs disto, trazia um perfume que  ele conhecia bem, e o som de um beijo
- que veio vindo devagar, devagar, atÊ parar em seus lÂbios.
     O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
     - Estou indo, FÂtima - disse ele.




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